2 em 1: Jackpot: Loteria Mortal! e A Liga
Qual a dificuldade de Hollywood com comédias de ação?
Jackpot: Loteria Mortal!
Lembra de Uma Noite de Crime, em que as pessoas podiam matar os outros durante um dia no ano para ‘purgar’ as frustrações sociais? Agora imagina adaptar tal conceito em um futuro próximo (2030), na Califórnia, em que uma loteria criou uma regra inusitada e sancionada pelo Governo: quem matar o vencedor do prêmio até o por do sol ganha a bolada, com a ressalva de que armas de fogo são proibidas. A sorte é substituída pela livre iniciativa de pessoas médias, que batem o ponto no trabalho antes do término do expediente, e participam da caçada humana que não é ácida o bastante para servir de crítica social, e nem caótica e irreverente para entreter. É neste cenário que Katie Kim (Awkafina) retorna à Los Angeles para recomeçar a carreira de atriz. As coisas não dão certo, mas Katie acidentalmente se inscreve e ganha a loteria acumulada (“apenas” U$ 3,6 bilhões).
Sorte ou azar? Metade de Los Angeles, inclusive caratecas, iogues, atores frustrados etc., começa a persegui-la e apenas Noel (John Cena) aparece para protegê-la. Ela tem razão em não confiar nele a princípio, embora o fará com o tempo, em mais um filme medíocre do habitualmente competente Paul Feig (de Missão Madrinha de Casamento e Um Pequeno Favor). A relação entre Katie e Noel é suportada somente pelo carisma dos atores, cuja persona está sendo drenada a cada produção: Awkafina é uma comediante de pensamento instantâneo, mas que funciona em doses homeopáticas; enquanto John Cena já usou e abusou da personalidade ‘Touro Ferdinando’ de um brutamontes com o coração bem intencionado, e ver o ator mais uma vez no piloto automático só reforça a crítica neste sentido.
Apesar de acertos esporádicos na comédia, a dupla simplesmente não funciona junta na ação, e considerando que esta é uma ‘comédia de ação’, então é parte relevante que seja analisada. Aliás, em um filme em que toda e qualquer pessoa é uma assassina em potencial, empregando armas inusuais, é negativamente surpreendente como o roteiro de Rob Yescombe seja pedestre e burocrático. A anarquia é minúscula em comparação com o retorno eventual. Três dúzias de pessoas aglomeradas do lado de fora do quarto do pânico de Machine Gun Kelly tentando matar Katie não está exatamente no mesmo nível absurdo e criativo da premissa da história, mas um arranha-céus abaixo. Embora Los Angeles, poderia ser Chicago ou Dallas, pois o roteiro mal arranha o potencial dos habitantes da cidade ou desta própria como cenário de ação.
E por mais que o roteiro associe o individualismo e a ganância do norte-americano, na figura do pai que abusa emocionalmente da filha atriz mirim, de quem atira lixo no pé de pessoas em situação de rua ou de quem aluga um quarto com fotos falsas, somente resta isto: a associação pela associação. O norte-americano é dessa maneira, então não se oporia a matar o próximo se isto não fosse considerado crime e pudesse render uma grana. Parabéns, Jackpot: Loteria Mortal!, se essa perspicácia se traduzisse em cenas de ação eficientes - o que Paul Feig parece incapaz de fazer -, em um comentário mordaz e pertinente - o máximo que o roteiro faz é incluir quem se recusa a participar do jogo - ou ao menos em um filme divertido, a crítica teria funcionado bem melhor.
Jackpot: Loteria Mortal! está disponível no catálogo do Prime Vídeo, e abaixo você confere a minha crítica em vídeo para o filme.
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A Liga
Brasileiro tem medo de sindicatos, deve ser, porque pouco justifica traduzir o título original - O Sindicato - em A Liga, com isto perdendo o ‘ineditismo’ da produção que entrou no catálogo da Netflix. No lugar da CIA, FBI, MI5, MI6 etc., organizações de espionagem que anunciam a sua presença na maneira de se vestir e de se comportar, este Sindicato reúne pessoas médias com habilidades inexploradas dentro do mercado de trabalho médio. Pessoas capazes de desaparecer na multidão e não serem notadas, e assim realizar missões confidenciais, como recuperar um disco rígido que contém a informação dos agentes secretos ou espiões ocidentais e objeto de um leilão futuro. A fim de fazê-lo, Roxanne (Halle Berry) recruta seu ex-namorado do ensino médio, Mike (Mark Wahlberg), para uma missão em Londres e o resto você pode imaginar.
Quando conhecemos Mike, ele está deixando o quarto da sua ex-professora de inglês e retornando para a casa da mãe para ir ao trabalho. Ele é um funcionário da construção civil, leia-se: aqueles que estabelecem a fundação da sociedade, e não amadureceu, não é a toa que a canção de Peter Pan é tocada em certo momento. Ele não é um cara ruim, mesmo que pareça ter roubado o carro que dirige; ele só não soube jogar as cartas que a vida lhe deu, apesar de tampouco amaldiçoar sua vida pelo caminho que trilhou. E se pareço traçar o seu perfil psicológico - gostava mesmo de Mindhunter - é que Mike é o arquétipo do capitão da equipe de futebol americano no ensino médio que descobriu, a duras penas, que a vida não é o passeio no parque que lhe venderam na juventude. É hora de amadurecer, o que a sua queridinha do ensino médio, Roxanne fez ao deixá-lo.
De certa forma, A Liga proporciona uma oportunidade para que o homem médio norte-americano reconcilie-se com um sonho em que acreditou firmemente quando era adolescente, antes do banho de água fria: de que era especial e faria a diferença, neste caso, salvaria o mundo de uma ameaça. Mark Wahlberg é um ator adequado para esse tipo de personagem que escuta Bruce Springsteen, enquanto bebe cerveja com os seus amigos no bar depois de um dia cansativo de trabalho. Mesmo que a escalação lhe caía bem, assim como a Roxanne de Halle Berry, algo não funciona em A Liga: talvez seja o fato de que, apesar de sua composição, a organização secreta é igual a qualquer outra já vista anteriormente. Ou então, um problema de lógica interna: porque mesmo que o agente secreto seja um homem médio, dentro de um mundo em eterna vigilância igual é a cidade de Londres, a máscara rapidamente cai e ele se torna só mais um agente aos olhos de quem mais importa: os adversários.
Apenas a ideia original não ajuda a tirar essa combinação ‘ação e romance’ do lugar-comum - ainda mais porque a relação entre Mark e Halle é mais fria do que a cidade costuma ser. A direção de Julian Farino é igualmente fria, com as sequências de ação burocráticas que entediam mais do que envolvem, enquanto o roteiro aposta no mais do mesmo para criar uma reviravolta telegrafada. A ideia de Sindicato, de trabalhador ou de pessoas comuns salvando o mundo - pois é isto que pessoas como nós fazemos diariamente, apesar de não haver os holofotes em nossos rostos - é logo abandonada, em favor de uma obra que exalta o individualismo quando finge fazer o contrário. Aí Karl Marx se revira no túmulo e não sabemos o motivo.
A Liga está disponível no catálogo da Netflix.