Todo Tempo que Temos (We Live in Time), diretor John Crowley
O inglês tem o termo tearjerker para designer filmes concebidos para emocionar ao ponto de arrancar lágrimas, e Todo Tempo que Temos, igual à maioria dos filmes que lidam com doenças (ex. o câncer), é designado para que, depois de 1 hora e 40, você saia enxugando o rosto, embora incapaz de esconder as marcas por onde as lágrimas passaram. Emocionar não é difícil, e apenas exige uma combinação entre os gatilhos sentimentais e a trilha sonora ou musicial. Como emocionar, eis o que separa o bom do mau tearjerker, na minha perspectiva, é claro.
Com roteiro escrito por Nick Payne (de O Sentido do Fim, Wanderlust e A Última Carta de Amor), Todo Tempo que Temos não demora para descortinar o elefante no meio da sala de estar: o câncer de ovário da estrelada chef de cozinha Almut (Florence Pugh) retornou e ela precisará enfrentar mais uma bateria de quimioterapia. Ao lado de seu companheiro Tobias (Andrew Garfield), Almut deve decidir entre enfrentar de novo o tratamento ou aceitar a finitude e viver intensamente os dias restantes. É uma decisão que Tobias assiste e participa, e o roteiro está de parabéns em adotar um diálogo ‘não violento’, nem sentimental ou chantagista, mas maduro. Até quando a ansiedade ou a angústia, naturais em uma situação igual a essa!, entram em fervura e os personagens aumentam o tom de voz, ainda assim nós podemos perceber que a emoção imediata é temperada em seguida com serenidade.
A propósito, a estrutura da narrativa é bastante envolvente em embaralhar os eventos cronologicamente, e obrigar-nos a ser espectadores ativos, não passivos. Pode parecer um tanto confuso no início - eu imaginei algo totalmente diferente do que aconteceu, quando Tobias tentou assinar documentos importantes, por exemplo -, apesar de após refletir parecer-me a melhor decisão dada a natureza da narrativa. Se Todo Tempo que Temos fosse linear, seria basicamente uma escalada emocional (o início do romance, a gravidez etc.) e uma ladeira (a descoberta do câncer e as consequências). Do jeito que é, indo e vindo no tempo, a narrativa administra momentos ingênuos e descontraídos com sérios e traumáticos, de um jeito que não parece explorar a doença de Almut para encontrar a sua força dramática. Assim, não é mais a doença define a personagem, é a vida, e ao que assistimos é ela acontecendo em linhas múltiplas, como memórias que vão e vem.
O diretor John Crowley (de Brooklin) não rejeita o sentir, mas o sentimentalismo. Em momentos em que poderia render-se ao dramalhão, devolve com uma leveza bastante bem-vinda. Eu poderia até mencionar o momento em que Almut raspa os cabelos, só que é mesmo quando a assistente de cozinha a surpreende no banheiro que realmente essa sensibilidade vem à tona. Em outros instantes, a comédia corre solta e sem freios, vide a sequência ambientada no banheiro de um posto de gasolina. Não é o caso de o diretor ter vergonha do drama ou das lágrimas, mas de encontrar um meio adequado e eficaz de maximizar o efeito deles a partir dos elementos de contraste. Quando Almut distancia-se de Tobias, o efeito é muito melhor porque não estivemos expostos a todo um massacre emocional.
E a química entre Florence Pugh e Andrew Garfield cria uma genuína cumplicidade e lealdade que é admirável. Aliás, que bom que a narrativa não instrumentaliza o câncer como um meio de aprendizado do outro, e mantém Tobias na retaguarda familiar mas também narrativa. Decisões iguais a essa ilustram toda a maturidade de Todo o Tempo que Temos, um tearjerker preocupado em deixar as lágrimas caírem de maneira natural dos rostos de cada um.
A Vilã das Nove, dir. Teo Poppovick
No primeiro episódio da 6ª temporada de Black Mirror, uma mulher comum assistia à sua vida se desenrolar em um programa de televisão. A Vilã das Nove tem uma mesma premissa, embora um embasamento realista e emocional mais sólido do que a popular série da Netflix, que chega a ser até injusto compará-los tão somente pela semelhança da premissa.
Karine Teles é Roberta (e também Eugênia), uma fonoaudióloga e preparadora de voz bem-sucedida no Rio de Janeiro. Um dia, um ator nordestino que deseja neutralizar o seu sotaque explica a razão para abrir mão de suas raízes: ser aceito por uma indústria audiovisual padrão. É uma conversa que resvala nas decisões de Roberta, que deixou para trás o seu marido, a sua filha e a sua vida, para recomeçar conforme seus termos, um passado com que terá que lidar, quando sua vida pretérita começa a ser revelada a todo o país na novela das 9. Sem qualquer vestígio da ficção científica de Black Mirror, o motivo por que a vida de Roberta é transformada em matéria prima audiovisual está no misto entre o interesse do dramaturgo interpretado pelo mestre Antônio Pitanga e o ressentimento da filha de Roberta, vivida por Alice Wegmann, que tem a expectativa de que a novela faça com que a mãe que a abandonou saía da toca onde se escondeu.
Camila Márdila interpreta a Roberta da ficção, e diverte-se em transformá-la em uma versão vilanesca, em nada diferente do que já fizeram Renata Sorrah ou Beatriz Segall. O tipo de personagem cujos crimes e contravenções o espectador ama acompanhar, só para descarregar, na ficção, o ódio e inconformismo que acumulam no decorrer do dia. É uma penitência criada na ficção e que sangra na realidade, na agressão física sofrida por Paloma - é até divertido assistir a Karine e Camila contracenarem depois de nosso clássico Que Horas Ela Volta?, dentro do diálogo na narrativa escrita por André Pereira e Gabriela Capello, sobre a relação ambivalente que existe entre real e ficcional. Esta bebendo do que aquela tem a oferecer, além de ser de onde o artista busca inspiração na criação artística, enquanto a ficção também inspira o comportamento na realidade. Quantas pessoas não adotaram gírias e estilos inspirados no que propuseram os atores (vestidos na pele de seus personagens).
E a direção de Teo Poppovick (da subestimada comédia TOC: Transtornada Obsessiva Compulsiva) é eficaz em intercalar ficção e realidade, mantendo-os separados quando deve fazê-lo, e confundindo-os para explorar as suas interseções. É ainda inteligente em não julgar Roberta - eu até me questionei em momentos se não deveria fazê-lo de um jeito contundente, afinal é uma mãe que abandonou e ‘esqueceu’ a filha, mas após refleti que foi a melhor decisão. Karine Teles já abraça a nuance de uma mulher entre duas identidades, uma que não está perfeitamente confortável como Roberta, embora lhe faça bem a autonomia e independência que perdeu ao engravidar. Ela é punida e rejeitada pela segunda filha, vivida por Laura Pessoa, que tem o costume de chamá-la pelo primeiro nome (ela reserva mãe apenas para quando não está com ela). E não vejo como ajudaria a narrativa se Roberta fosse tratada como uma vilã desalmada, vez que, se a ficção redimiu Eugênia (na novela), por que fazer diferente?
Teo é coerente ao rejeitar o julgamento imediato, realizado por quem está na frente da televisão e protegido pela ‘distância’ da ficção. Até recordo a cena introdutória, dentro de um aquário, em que uma mulher vestida de sereia é julgada instintivamente por ser uma personagem dentro de um faz de conta. A realidade exige outra sensibilidade que Teo pode conferir, mesmo quando tropeça num desfecho esperançoso demais, por esta razão, ainda mais ficcional do que a ficção dentro da narrativa. Talvez tenha sido esta a ideia, em interrogar a relação do público com a ficção, transformando-nos naqueles que encontram um ator na rua e os repudiam pelos papéis que interpretam. No fundo, Roberta ou Eugênia são só formas de extravasar o que há dentro de nós, partes de nós, do mesmo jeito que a novela das 9.