2 em 1: Vermelho Monet e Foram os Sussurros que me Mataram
Duas produções brasileiras estreiam na semana
A algumas horas de embarcar para o meu 3º Festival de Cannes, sou tomado por uma ansiedade e vim à newsletter escrever para encontrar refúgio, neste processo celebrar duas produções nacionais que estrearam nesta semana nas salas de cinema. De certo modo, são produções que abordam refúgios particulares: Vermelho Monet e Foram os Sussurros que me Mataram.
A obra do crítico Arthur Tuoto é uma espécie de cinema neo-pandêmico, em que não é a quarentena requerida pela Covid-19, mas um confinamento obrigatório pré-reality show que mantém a celebridade Ingrid Savoy (Mel Lisboa) confinada dentro do quarto de hotel, enquanto a sociedade entre em colapso externamente. A causa pode não ser a mesma, mas a consequência talvez seja. Confinada, Ingrid permanece dentro de um limbo, um purgatório, em que fatos e factoides, verdades e falsidades são as abstrações que antecedem um estágio esperado que ponha termo à ansiedade da protagonista. O que há de concreto é a imagem, o close-up de que Ingrid tanto critica, embora o close “nunca seja apenas um close”. Assim, o close em Ingrid não é revelador, mas dissuasivo. Ela é um perfil, daqui a pouco falarei mais sobre isto. Contudo, Foram os Sussurros que Me Mataram é o close das obsessões de Tuoto dos textos críticos à encenação fílmica.
A narrativa interroga o dispositivo cinematográfico a serviço do retrato verossímil de uma realidade concreta, e oferece uma alternativa que já parte do pretexto criativo: a especulação de uma realidade não necessariamente irreal, e sim artificial de tal modo que soe onírica. O close inicial já é revelador disto. Na íris de Mel Lisboa, uma auréola luminosa característica de um ring light - que influenciadores utilizam para gravar sua realidade, não “a” realidade. Tuoto escancara a imagem. E, ainda assim, a imagem nos engana e manipula. Pode até ter sido um ring light que tenha sido usado nas filmagens, apesar de, na diegese, Ingrid está diante de uma luminária de banheiro detrás de um decalque do revestimento cênico. O cinema também é inquirido quando Ingrid, diante da janela (a janela de projeção cinematográfica, talvez?) questiona sobre uma realidade do lado de fora. É o cinema que coloca a realidade em crise, e a janela é mero dispositivo de acesso e atravessamento entre mundos, ou o olhar, de dentro para fora mas também de fora para dentro, que desafia a realidade? Assim não me parece que a narrativa seja sobre uma mulher em confinamento, mas sobre como dialogamos, por imagens e pela arte das imagens, com esta realidade.
O que torna a forma de Foram os Sussurros que me Mataram mais atraente. Tuoto rejeita parcialmente a ideia de um filme de câmera. Ingrid é incapaz de deixar o quarto, ainda que o que está fora de campo sangre para o interior do quarto, através da edição sonora e do leva e traz de informações realizado pelos personagens colaterais (a assessora da atriz, o influenciador digital que rejeita tal rótulo, o produtor do programa televisivo). As informações desencontradas obrigam o espectador a parar de se preocupar com o que os personagens expressam, e preocupar-se em como Tuoto expressa um desalento de Ingrid. É a angulação da câmera que subjuga a celebridade, é o filtro avermelhado e depois o branco etéreo que criam dimensões oníricas (até religiosas, pensando melhor) e é a movimentação que desafia a claustrofobia inerente à narrativa. E o perfil.
O perfil é um enquadramento manipulador, pois oculta, ou pode ocultar, as intenções de um personagem em favor do que deseja revelar. Mel Lisboa exibe o alumbramento, a confusão ou o temor de uma forma bastante calculada. Ingrid, embora ilustrada em closes, é um mistério do início ao fim. Ela está no epicentro de uma polêmica, que não é determinante. Ela é uma celebridade pelo quê exatamente? (Um comentário ácido da cultura que cria celebridades do éter). Ela provoca o fascínio de quem tenta entendê-la e a frustração pela incapacidade de passar da página 5. Ela é uma imagem, idealizada e modelada, por ela própria via contrato, por seus assessores e Tuoto para falar sobre os efeitos que a imagem provoca em quem as absorve. Ela é uma imagem, e toda imagem já nasce falsa porque por definição incapaz de reproduzir na integralidade a realidade ao redor. Assim, Foram os Sussurros que Me Mataram artificializa nossa experiência, na empostação da voz que desnatura emoções e na teatralização controla que revela que há um titereiro puxando os fios dos personagens e da câmera que os acompanha. Se a imagem jamais será capaz de expressar o real, então deixe-a brincar de falseá-lo.
A imagem, agora pictórica, é o objeto de Vermelho Monet, de Halder Gomes (de Shaolin do Sertão e Cine Holiúdy). No roteiro, Johannes Van Almeida (Chico Diaz) é um pintor e falsificador desencantado com a vida. Ele perdeu a habilidade de enxergar em cores (a condição denominada acromatopsia), e são justo as cores, particularmente o vermelho do ruivo do cabelo da esposa (Gracinda Nave), aparentemente vítima de derrame que a privou da fala e da mobilidade, só não do olhar, que o atormentam no ato criativo. Ele procura o vermelho na memória e tenta reproduzi-lo na tela, sem nenhum sucesso. Já a curadora de artes Antoinette Léfèvre (Maria Fernanda Cândido), enquanto experencia uma história de amor com a atriz Florence Lizz (Samantha Müller), tenta contornar o escândalo de uma pintura de Jean-Jacques Henner, Santa Fabíola, e que pode ter sido o alvo de falsificação.
Vermelho Monet explora a imagem de formas próprias. Johannes é escravo da ambição criativa, e frustrado por ter perdido o meio para tornar o olhar mental em um retrato. Já Antoinette explora a imagem mesmo que esta seja falsa, e talvez ser falsa possa até ser aceitável de uma forma mercantilista da arte. A falsificação, na narrativa, tem seus meandros. É Johannes que falsifica como um estilo de vida, e seria a falsificação, a sua maneira, arte também, pois carregada de uma intenção: a de reproduzir o original. É a curadora que deve enfrentar a forja do original. Ou ainda Florence, uma brasileira que irá interpreta uma personagem portuguesa no teatro, e falsificará, digamos assim, pela via da interpretação as emoções e a trajetória da personagem no roteiro. Vermelho até apoia-se em atuações competentes - Chico e Cândido são experientes o bastante para saberem explorarem os excessos dos personagens, e Samantha é uma adição ingênua e positiva ao trio que, paulatinamente, assume o controle da imagem que expõe e revela - dentro de uma tapeçaria neonoir em que azul e vermelho são alternativas ao jogo de luz e sombras, mas é vítima de sua estruturação operística.
A ópera, sabemos, é trágica. E essa tragédia, tão significativa na vida do protagonista, parece-me a forma antinatural de explorar as discussões de arte encenadas por Halder. A tragédia encerra na própria tragédia os comentários que pretende realizar, e o mais elementar deles é explorado insistentemente, o de que o artista só é verdadeiramente reconhecido post-mortem. Isto prejudica os comentários cínicos e certeiros a respeito do mercado da arte, as cifras milionárias, a ambição de bilionários definirem-se pelas peças de arte que não compreendem e que exibem nas paredes de suas mansões, ainda que sejam falsas. Há, a meu ver, uma avenida empolgante diante de Halder que decide por outra, eficaz até certo ponto, mas que se fagocita em seu quinto movimento.
Isso não me impede de elogiar o trabalho de curadoria realizado dentro da narrativa - que passeia por composições clássicas ou contemporâneas, pinturas, citações e toda uma forma de expressão que faz com que Antoinette seja, a sua maneira, a falsificação da imagem do diretor. E, se você é um daqueles que julgam o artista pelo que realizou, talvez se surpreenda com o trabalho fotogênico de Halder que emoldura sua narrativa em quadros evocativos e expressivos, que valorizam a ambientação europeia sem lhes privar de um fresco de um olhar original ao velho continente. Vermelho Monet é uma obra ambígua e de um requinte estético admirável que me permite, às vezes, vencer a minha objeção em relação à narrativa em si.
Agora volto à minha ansiedade (no momento em que publico, faltam 6 horas para meu embarque, aproximadamente).