2 em 1: Volta Priscila e A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio
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Volta Priscila
Na minissérie em 4 episódios disponível na Disney+, Volta Priscila, Eduardo Rajabally explora a investigação do desaparecimento, irmã do campeão mundial de MMA, Vitor Belfort, e a relação da família com o fato de que até hoje, passadas duas décadas, ainda não há informações conclusivas que permitam a família processar a perda de Priscila e isto a mantém condenada a um purgatório incerto e interminável. Faltam respostam, e sobram perguntas, e a minissérie é bastante eficaz em muitas frentes: exuma as linhas investigativas, expondo as deficiências ou limitações que impediram ou dificultaram a obtenção de respostas, enfatiza a maneira com que cada membro da família lida com a ausência de um ente querido e, mais importante para mim, faz com que Priscila seja o centro da narrativa quando esta poderia descambar para o sensacionalismo - é até raro mas acontece com frequência.
Os instantes mais emocionantes de Volta Priscila são aqueles em que Priscila adquire uma materialidade a partir de imagens e vídeos de arquivo, cartas, memória e saudade. Uma materialidade que, no restante do tempo, é preenchida com uma interpolação, de quem assiste, e dos familiares que permanecem. O intercâmbio é o ponto de virada na vida de Priscila, ou ao menos é isso o que a minissérie defende, e mesmo assim apenas podemos inferir o que pode ter acontecido com ela para ter se afundado em um estado melancólico e depressivo, que frequentaria com regularidade durante a idade adulta. E é relevante observar a centralidade narrativa da saúde mental e emocional de Priscila, ainda que Vitor, por exemplo, pareça repetir o mantra ultrapassado de que depressão é um estado de saúde por que todos passamos, e não a doença psíquica que de fato é. A propósito, é muito bacana assistir à maneira com que Vitor, a sua esposa Joana Prado, e os pais, tios e amigos de Priscila lembram dela em momentos de vulnerabilidade, já que é um alerta muitas vezes ignorado de um pedido de socorro não atendido.
Nenhum deles tem culpa, porque se o desaparecimento é fruto de um crime, somente o agente do crime quem deve ser culpado, e se o desaparecimento é resultado da fuga, isso fala mais sobre a sociedade brasileira no início do século do que sobre o caráter e amor daquelas pessoas. E o amor deles pode ser percebido na tentativa de perpetuar a memória de Priscila, para que seus sobrinhos conheçam a tia que partiu. A atmosfera familiar, diferentemente do que acontece em histórias baseadas em crimes reais (aqui considerando tratar-se de um crime, o que é muito sugestivo), confere à narrativa uma melancolia típica de um velório, no qual a tristeza do adeus é equilibrada com o amor da lembrança.
E, enquanto faz isso, a minissérie também explora a investigação propriamente dita, e incidentes e obstáculos que enfrentou no meio do caminho e questionamentos que até hoje permanecem. A morte de um criminoso que poderia ter informações (frise-se que poderia), como resultado de uma ação policial não relacionada com o caso investigado, aparenta ser um daqueles eventos para o qual a família sempre retornará. Já o fato de a investigação não ter se aprofundado na relação de Priscila com o namorado, ou de não ter dado razões inequívocas para não o fazer, é uma falha que pode ter inviabilizado o encontro de Priscila. Não que o namorado fosse o culpado, mas a partir dali poderiam surgir ramificações de investigação que a polícia não explorou adequadamente. E este andamento da investigação está associado com a construção da mulher, que deixa de ser “somente” a irmã do lutador Vitor Belfort - como era mencionada na época - para ser a artista, arquiteta, sonhadora, às vezes introspectiva e em outra alegre, Priscila, e devolver a identidade e personalidade a quem se reduziu a uma foto pregada no poste é, sem dúvida, o maior mérito da minissérie.
A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio
Existe infelizmente muita brasilidade tratada no documentário A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio, da diretora Juliana Antunes (Baronesa): violência e feminicídio, a ineficácia dos mecanismos legais de proteção da mulher, a relação do brasileiro com o futebol, além das quatro linhas do gramado até idolatrar um criminoso, a difamação e o sensacionalismo midiáticos que transforaram uma mulher vítima em um alvo fácil para ofensas e ameaças. O Caso Eliza Samudio é Brasil para quem tem estômago, para os fortes, pois evidencia de modo incontestável as engrenagens que perpetuam o ciclo de violência de que Eliza é só mais uma vítima. Não a última, infelizmente.
É possível subdividir o documentário em duas metades, uma com a presença de Eliza - a partir de vídeos de arquivos -, outra com a ausência e a cobertura do julgamento dos acusados pelo crime de assassinato. A primeira parte é muito superior a última, ainda mais considerando a própria maneira com que Eliza se comportou quando iniciou seu relacionamento com Bruno. Apelidada de “Maria Chuteira”, um termo cujo machismo é tão óbvio que dispensa comentários, Eliza não se intimidou com a fama e o poder de Bruno, à época o goleiro do Flamengo, o dono da maior torcida do futebol brasileiro. A ex-modelo acionou a família, os amigos, a polícia, a imprensa, até fugir quando toda a rede de proteção que pode existir simplesmente revelou ser incapaz de constranger a ameaça física e psicológica sofrida, mesmo estando grávida mesmo depois de ter dado à luz a seu filho, Bruninho.
Parece até provocação, mas é uma maneira corajosa e desafiante de uma mulher que, certa de suas convicções, não abaixou a cabeça diante de um homem poderoso como era o goleiro e da promessa de um calvário que jamais teria imaginado que pudesse acontecer. Com a exposição de diálogos antes não revelados, a figura de Eliza reúne todos os temas que citei no parágrafo introdutório, e a sua ausência narrativa, ainda que natural, também enfraqueça o resultado final.
É quando Juliana Antunes entra no modo protocolar do registro do julgamento, que fora televisionado, e não tem muito a apresentar senão as conclusões tantas vezes já expostas. Eu até entendo a necessidade de satisfazer a curiosidade de um público que pode desconhecer o caso e só estar entrando em contato com ele via documentário. E neste sentido, talvez minha crítica até pareça exagerada, mas é só que o julgamento e as entrevistas com as partes relacionadas (mãe, juíza, delegada, e até o pai, um sujeito que aparece e desaparece da narrativa por ser, ele próprio, um abusador) não tiveram muito a me oferecer. Esta segunda metade dará uma percepção do funcionamento da justiça brasileira pois, tão acostumados estamos com o cinema norte-americano, que às vezes podemos até imaginar que a nossa justiça é “estrangeira”.
Mas não há nada de estrangeiro em uma história de violência contra a mulher, em um país em que, a cada 15 horas, uma mulher é vítima de feminicídio.
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