Zé
Apesar de narrar os eventos de um momento histórico por tantas vezes escrutinizado no audiovisual brasileiro e do gênero biográfico que anda tão em baixa, este Zé - cujo título confere até uma impressão de universalidade à trajetória do líder do movimento estudantil torturado e assassinado pela ditadura militar, Zé Carlos Machado - tem um ineditismo conceitual e executivo que o individualizam dentro de filmes que tratam de talvez o período mais sombrio da história do país.
Zé (Caio Horowicz) é um estudante de direito, oriundo de uma família burguesa de intelectuais, o pai era um professor aposentado compulsoriamente pelo regime, na clandestinidade juntamente com a esposa Bete (Eduarda Fernandes). Eles integram a Ação Popular e, instalados no nordeste, procuram conscientizar os trabalhadores dos direitos e da situação política do país, enquanto articulam a resistência noutros polos da região. Não dá para esquecer que são apenas jovens adultos, de 20 e tantos anos, e pais de dois filhos, dentro de uma condição de miserabilidade, desemprego e fome. A sinopse da trajetória de Zé e Bete poderia resultar numa biografia careta e quadrada, mas é o oposto disto, graças ao trabalho do diretor Rafael Conde.
A direção articula a visão objetiva histórica, criada por fatos e documentos daquele período, com a visão subjetiva de Zé, presente nas epístolas com que se corresponde com a família e com o espectador. É uma encenação híbrida, cuja teatralidade é um produto da solenidade declamatória - um gesto de respeito para cada palavra escrita com o sangue injustamente derramado de um jovem arrancado muito cedo do meio social -, e cuja qualidade cinematográfica está no rompimento do véu de passividade. A quebra da quarte parede não é apenas consciência da própria natureza de cinema, mas convite à reflexão, fazendo com que o espectador seja um amigo e familiar de Zé naquele breve recorte.
Não para só no conceito, a encenação de Rafael Conde é também exemplar. A rejeição do plano e contra plano, em favor de enquadramentos que reúnem os personagens nas imagens, cria uma intimidade de que todos partilham, enquanto os empurra contra as “paredes”, do mesmo jeito que os torturadores fariam. Dentro deste recorte de espaço, há uma série de oportunidades para que os personagens revelem sobre sua condição a partir de ações e gestos, e não de diálogos expositivos. Os atores encaram para ‘fora do quadro’ como a maneira eficiente de ilustrar a paranoia, o medo de serem descobertos. Esta paranoia torna-se concreta à medida em que a encenação utiliza uma perspectiva vigilante, à lá A Conversação, combinada com a trilha e edição sonora - que altera a voz dos personagens como se estivessem sido escutados por grampos. Alias, todo trabalho de desenho e mixagem sonoros merece fartos elogios, como na sequência em que Bete e Grauninha (a excepcionalmente humana Samantha Jones) convocam trabalhadoras e o som das vozes delas é abafado pelas máquinas - o capitalismo sufocando a revolução - e ignorado por mulheres que utilizam protetores auditivos.
Eu tenho tanto a elogiar Zé, como a maneira com que retrata os agentes da repressão: embora não estejam sempre presentes, não tenham nome e raramente aparecem num plano aberto que torne possível enxergar o seu rosto, eles são uma ideia sensível, uma presença que aterroriza os personagens e, por processo de identificação, o espectador. A violência não é explícita, com exceção de um momento pontual quando precisa ser, e mesmo assim a sensação é que os personagens são violentados de maneira até maior do que fisicamente: a utilização de um nome falso para conversar em “segurança” com quem se ama e a ansiedade provocada pelo medo são formas bem mais eficientes e até expositivas de um estado verdadeiramente terrorista (que instila o medo em ser livre).
E não poderia deixar de citar o elenco homogeneamente competente, encabeçado por Caio Horowicz, cuja sensibilidade pode ser percebida no momento que hesita, depois de saber que Gil abandonou a militância. Em vez de um sermão de desagravo, Caio só suspende a respiração antes de retornar à normalidade, como se houvesse pensado por 1 ou 2 segundos se era prudente estimular uma inimizade com seu futuro cunhado - e Judas. A propósito, Zé é ainda melhor quando revela a contraditoriedade de seu herói e mártir, fruto de uma ingenuidade em acreditar, naquele instante, que a força de uns jovens estudantes idealistas seria capaz de enfrentar uma máquina de terror, ao invés de apostar no pragmatismo de outros personagens que o cercam.
Não foi. Não naquele período, mas anos depois. Pois igual uma semente demora muito para criar suas raízes e transformar-se em um jacarandá com solidez, também a luta e os ideais de Zé Carlos e tantos outros iguais a ele, que morreram por combater por um país justo.
Zé estreia nos cinemas quinta-feira, 29/08, com distribuição da Embaúba Filmes.
O Mensageiro
Vera, a personagem interpretada por Valentina Herszage, não é muito diferente do Zé citado anteriormente. É uma jovem adulta, filha de uma classe média burguesa (o pai é médico), e que decidiu combater por um país em que acreditava e sofreu a violência de um regime ditatorial desumanizador. Contudo, diferente de Zé Carlos, Vera não é uma personagem real, embora a história de O Mensageiro seja inspirado pela experiência da diretora e co-roteirista Lúcia Murat, quando foi presa pelo DOI-CODI.
Lúcia propõe desconstruir o maniqueísmo com que são enxergados os carcereiros ou torturadores do regime, em uma dialética cinematográfica do perdão - concretamente até onde a fábula narrativa lhe permite. É como se a diretora sentasse o torturador e o torturado na mesma sala, e os forçasse ao experimento de interação, de onde defluiria a humanidade que habitualmente é negada a quem é só taxado de comunista, socialista, terrorista etc., termos que despem o indivíduo de uma humanidade aos olhos de quem os violenta. Então somos apresentados à Vera, com a perna machucada das torturas a que foi submetida, e a sua relação com o carcereiro, a princípio conveniente, Armando (Shico Menegat).
Talvez por ousar perceber Vera além de uma inimiga do regime, talvez por admirá-la por sua beleza, pois seu rosto inscreve-se dentro no da namorada oportunamente, fato é que Armando decide dar um passo adiante e tratar com um mínimo de humanidade, quem teve esta de si roubada. A partir daí, estabelece uma relação com a mãe de Vera, Maria (Georgette Fadel), cuja esperança de encontrar a filha viva havia diminuído até a visita de Armando. Lúcia encena O Mensageiro em encontros: de Maria com o padre da igreja (Javier Drolas), do tipo que orgulha e não envergonha a batina; de Maria com o marido pragmático e amoroso, Henrique (Floriano Peixoto); ou de Armando com o soldado João (Higor Campagnaro). Estes encontros promovem questionamentos mais do que oferecem respostas, mesmo porque as dúvidas produzidas já são a resposta que buscavam.
O filme desenvolve-se por uma narrativa e forma familiares, com flashbacks pontuais que conferem dimensão aos personagens além dos estereótipos que encenam a priori, até mesmo desafiando a empatia do espectador ao sugerir que Vera pode ter treinado para a revolução em Cuba. Não que isto a torne menos humana, prive-a dos direitos e garantias, ou autorize o cárcere e a violência, somente problematiza a sua relação com Armando - e com os ‘Armandos’ Brasil afora - com a personagem. Enquanto isto, as atuações partem de um racional de dar, ao texto, o corpo que requer, antes de explorar emocionalmente o que cada um daqueles personagens pode proporcionar. É como se o ato de interpretação também exigisse o processo de aproximação, não entre torturador e torturado, mas entre ator e personagem, entre espectador e personagem. Só depois da superação do estranhamento que existe entre diferentes é que podemos reconhecer que, no fim, todos somos iguais, não outros.
O Mensageiro está em exibição nos cinemas brasileiros com distribuição da Imovision.