Algumas histórias são indigestas o bastante para exigir a reflexão sobre quem, de fato, é o monstro do cinema de horror. Não é a Criatura, mas o cientista que a criou, Victor Frankenstein; não é O Homem que Ri ou o Corcunda de Notre Dame, mas é a sociedade preconceituosa. O conceito de monstro está no coração de A Garota da Agulha - que entrou no catálogo da MUBI -, o mais recente trabalho do diretor sueco Magnus Von Horn (de Suor), que tem início perto do término da Grande Guerra (como, então, era denominada a 1ª Guerra Mundial), quando Karoline (Vic Carmen Sonne) é enxotada da pensão onde mora, por não ter como arcar com o aluguel atrasado com o salário de costureira.
Karoline muda-se para uma pensão caindo aos pedaços, e que parece saída de uma arte conceitual de O Gabinete do Dr. Caligari. Durante a estada, engravida do gerente da fábrica onde trabalha, e surpreende-se com o retorno do marido, que acreditava ter morrido na guerra, agora deformado. Após alguns acontecimentos, Karoline também conhece Dagmar (Trine Dyrholm), cujo trabalho é intermediar a doação de bebês não desejados para famílias de médicos ou advogados ricos e altruístas. A trajetória por que passa Karoline é perturbadora, acentuada pela consciência estética.
O preto e branco opressivo e de altíssimo contraste da fotografia de Michael Dymek constrói momentos de beleza (mórbida), como aquele em que o marido de Karoline interrompe-se, no meio da escadaria, e o contraluz o destaca do mundo ao redor, senão pelo olhar que brilha assustadoramente no escuro. Enquanto isso, a direção de arte de Jagna Dobesz remete o espectador ao cinema expressionista do início do século passado, a partir de planos que acentuam as formas e os ângulos, e até modernizam a ideia da casa da bruxa de João e Maria. É possível afirmar que a narrativa é um acréscimo ao neoexpressionismo popularizado recentemente por O Farol, homenageado de um jeito perceptível na edição sonora.
Contudo, essa estilização envolvente esbarra na narrativa mal desenvolvida e na jornada torturante da protagonista que não permite ao espectador um minuto sequer de respiro. Uma amiga de Karoline aparece, no meio da narrativa, para desencadear a subtrama que colocará termo à ação de Dagmar. Já o excesso de violências a que o espectador está submetido provoca um efeito alienatório, que não é muito diferente do que o ópio que Karoline ingere por conta de Dagmar. Fora isso, apesar de ideias visuais atraentes, é frustrante que Magnus não desenvolva algumas delas de modo satisfatório. Enquanto escrevo, até reflito, é preciso desenvolver? Talvez não, ainda que tenha me sentido incompleto pelas sobreposições dos créditos iniciais – que, de fato, ditam o tom da narrativa, ou pelos planos detalhes dos olhos de Karoline, cujo propósito se encerra em si próprio.
E quando chegou o término da narrativa, não sabia dizer exatamente o que Magnus queria afirmar, se é que pretendia afirmar algo em relação à interrupção da gravidez. Parece que todo o estilo serviu só de panfleto para retratar a violência incorrida por mulheres no início do século passado, uma violência que, de algumas formas, ainda permanece contemporânea.
Crítica publicada durante a cobertura do 77º Festival de Cannes.