Anna Muylaert, depois de ter sido premiada na Mostra Panorama com Que Horas Ela Volta?, retornou ao Festival de Berlim com a première de A Melhor Mãe do Mundo, fora de competição, um drama de superação sobre violência doméstica, protagonizado por Shirley Cruz e Seu Jorge. A similaridade que há entre os trabalhos pode ser reparada a partir do nome das protagonistas, Val (Regina Casé) e Gal (Shirley Cruz), embora estas não sejam as únicas “mães da Muylaert”, expressão que fez a diretora sorrir, durante a nossa conversa no Berlinale Palast.
Desde a estreia da diretora em longas-metragens com Durval Discos, em que Etty Fraser interpretou a mãe do personagem título, até Mãe Só Há Uma, na qual Dani Nefussi viveu duplo papel, e sem esquecer a mãe de Karine Teles em Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert explorou a figura materna a partir de ângulos e formas diferentes, inclusive dela própria. Diante disto, quis saber o que a atraí nessas mães e como a diretora empresta a sua experiência na concepção e desenvolvimento dessas personagens.
“Eu preciso pensar nessa pergunta, porque não acho que elas sejam tão diferentes de mim. A Val não é tão diferente de mim”, explicou Anna. “Acho que há uma evolução. Entre a Val e a Gal tem uma evolução de autorrespeito. A Val aceita tudo, e a filha a transforma. A Gal já vem transformada. Há muito de mim, sim, não na corporalidade, mas na alma”.
Decidi provocar a Anna a partir do que citou sobre autorrespeito e transformação, mesmo que talvez não seja a pessoa mais apropriada para fazer a pergunta: “Por que Gal aceita Leandro ou, de modo amplo, por que as Gals aceitam os Leandros?”.
“Essa pergunta é fácil: olha o Seu Jorge”, brincou a diretora que, depois, continuou: “Essa é a complexidade. Praticamente só tem Leandros. A cada geração isto está mudando, e o mau trato feminino é institucionalizado há milênios. Quase toda mulher já gostou de um Leandro. E para este nós pegamos um dos caras mais lindos no Brasil, que ainda canta e faz samba. Quem quer largar o samba com o Seu Jorge cantando? Independente disso, é complexo: uma relação de abuso não é apenas de abuso, tem o ciclo. O cara bate, depois se arrepende, traz flores, depois diz que ama, tem o sexo, aí vem a cerveja e recomeça. Sair disso? Quem tiver a resposta ganha o Nobel. É uma 'escravidão' sentimental da mulher, e que acontece em outras relações. Até onde você aguentará o abuso do pai, da mãe, do parceiro, do chefe?”.
“Nós vivemos em uma sociedade capitalista em que a base econômica é a exploração do outro para o nosso benefício, em diferentes níveis. Algumas explorações são menos dolorosas porque envolvem uma troca. Não é o caso da Gal...”, continuei.
“Há uma troca também, sexual. Quando Leandro volta, Gal sai correndo, fecha e acaricia a porta. Ela está morrendo de saudade dele. Ela deseja ele, só que percebe que não dá mais. É a coisa mais difícil que há para largar. É a complexidade da relação abusiva. Não é apenas ‘levou um soco, saiu e foi embora’”, interrompeu com propriedade a diretora.
Gal é uma catadora de recicláveis, mãe de dois filhos e que foge do marido abusivo após ter sido novamente agredido. A fuga é maquiada em aventura, para blindar os filhos da realidade ao redor. Pergunto à diretora: “Usando uma metáfora do filme, dá para reciclar um relacionamento como essa?”
Anna e Shirley são unânimes, “Não!”, e a atriz continua: “É sobre força, vitória, dignidade, recomeçar. A primeira cena é um divisor de águas, é dali pra frente, vai ter que dar certo, não é sobre ela, é sobre os filhos também”.
A cena inicial a que a atriz se referiu é o boletim de ocorrência feito pela atordoada e hesitante Gal em uma delegacia especializada. A Melhor Mãe do Mundo emprega o abuso doméstico ainda como meio de encerrar ciclos, especialmente na troca de olhar que Gal mantém com Rihanna, a filha, e que Anna reforçou no roteiro: “A Luedji [Luna] até menciona sobre a agressão que a mãe da Gal sofria, a normalização...”.
“Normalizar o anormal. E quando alguém que combate isso…”, complementei.
“É louca!”, resumiu a diretora.
O drama da narrativa é a atitude e comportamento da mãe vítima de violência doméstica, tema enriquecido pelo contexto social dos coletores de recicláveis e das ocupações urbanas. “Como foi este processo de mergulho no ambiente de catadores de recicláveis e das ocupações?”.
“As primeiras catadoras de que ouvi falar foram a Fabiana da Silva e a Lôra, e a imagem ficou. Mas já tinha a ideia do abuso, a história construiu-se antes de conhecer a casa dela, na Favela do Moinho, uma visita transformadora. Uma mulher com uma história dramática, senão trágica, de uma inteligência, força e narrativa de vida tão interessante que você não encontra na Vila Madalena. E fiquei apaixonada pela força dela. Aí conheci tantas outras, fiz entrevistas, perguntei quanto ganhavam, como trabalhavam, onde e como moram, de onde vieram etc. Quando a Shirley entrou, fez o processo dela. É muito tocante, não é difícil se envolver”, explicou Anna.
“Se você for um ser humano de verdade, não é difícil [se envolver], não tem como. Independente de cor, raça, classe social, somos todas Gal. Parte daí, e aí vem as experiências individuais e os recortes. Eu trabalhei para interpretar a Gal. Farei outros filmes, fiz mães interessantes, mas a Gal é a mais importante, porque é capaz de reunir todos os ingredientes que eu, como atriz, como mulher, como preta, como mãe, que fiz a personagem com o útero aberto [Shirley havia recentemente dado à luz a sua filha], eu fui àquele teste para pegar o papel, não para ser testada. Eu fui uma ‘búfala’”, acrescentou a atriz imitando o jeito intenso de Gal, e referendado por Anna: “O que acho interessante é que a força que ela veio para pegar foi a mesma com que fez o filme”.
Dentro do contexto, o carro de coleta de recicláveis é um elemento narrativo e simbólico, o ganha-pão de Gal e, ao mesmo tempo, um fardo. O que veio foi uma troca sinérgica entre diretora e atriz, cada qual contribuindo com o olhar a respeito da cena em que Gal arrasta o carro de coleta, com os filhos, em uma ladeira paulistana.
Shirley: Quando as crianças sobem na carroça, o peso triplica.
Anna: Aí entra o mítico: a mãe carrega os filhos.
Shirley: E a sociedade.
Anna: O filme poderia ser refeito na China, na Índia, até em Los Angeles... porque a carroça é a barriga. A mãe carrega os filhos até uma certa idade.
Tive tempo para apenas mais uma pergunta: “Como vocês esperam que o filme seja recebido no Brasil, um país polarizado?”. Mais uma vez, Anna e Shirley interagiram.
Anna: A história está além da divisão. É uma história universal, que valoriza o aspecto humano.
Shirley: Creio que [A Melhor Mãe do Mundo] não é ‘somente’ um filme. [Ele] está além das divisões, é uma ferramenta colaborativa para que as manas permaneçam vivas, porque a gente está morrendo. Enquanto estamos nessa entrevista, quantas estão morrendo?
Anna: Uma a cada 15 minutos, no Brasil...
Shirley: É cinema de fé, fé que tem no futuro, de que tudo dará certo.
A Melhor Mãe do Mundo tem estreia prevista para agosto deste ano.