Filme de abertura da Generation Kplus, a Mostra do Festival de Berlim (Berlinale) dedicada a histórias que exploram o universo infantil sub-14 anos, A Natureza das Coisas Invisíveis é também o longa-metragem de estreia da diretora brasiliense Rafaela Camelo, formada em audiovisual pela UnB e pós-graduada em roteiro pela FAAP. É um trabalho humano e delicado em que Rafaela, que também assinou o roteiro, conta a história da garotinha Glória (Laura Brandão), que acompanha diariamente Antônia (Larissa Mauro), a sua mãe solo, em seus plantões de enfermagem no hospital local, entrando em contato direto com a morte.
Conversei com Rafaela Camela, em uma das salas reservadas para entrevista, na área de imprensa do Hotel Hyatt, onde acontecem as coletivas de imprensa. Depois de confidenciar sobre a minha relação com a morte - o meu pai faleceu quando tinha apenas 5 anos, e a minha mãe costumava mencionar que eu chorava meu medo de morrer -, quis saber de Rafaela de onde surgiu esta obra de amadurecimento em torno do tema morte: não apenas a morte do corpo humano, mas a morte de encerramento de ciclo, a morte de identidade do gênero e até mesmo a morte dentro do filme, que se transforma em outro filme.
“Nas primeiras versões do roteiro, o tratamento da morte não tinha um olhar generoso. A morte sempre esteve presente, embora tenha demorado para descobrir qual a abordagem do tom que desejava para o filme”, explicou Rafaela, que começou a trabalhar no roteiro em 2018, tendo recebido o Prêmio Cabíria de Melhor Roteiro de Longa-Metragem. Entretanto, com o advento da Covid-19, Rafaela modificou o enfoque: “As primeiras versões estiveram mais relacionadas com um terror, falando da morte dentro da perspectiva do medo. Houve um momento com o roteiro pronto e já premiado, em que decidi que não era essa a perspectiva que queria dar. Antes, havia o personagem do Pai e, quando trouxe para o ponto de vista da criança, as coisas começaram a se moldar à perspectiva de quem encontra lacunas e as preenche com a sua imaginação”.
Rafaela evita a palavra inocência, e opta por empregar fé. Não na ótica crente ou religiosa, mas a fim de conferir à jornada de Glória no entendimento do que é a morte um atributo amável e gentil, trazendo elementos pessoais para dentro do filme: “Para mim, tenho a memória de que, quando criança, era de uma família que não se comunicava, e as histórias, os livros e os filmes ajudaram-me a organizar o que era a morte, às vezes através da fantasia. Ela ajuda a botar em ordem sentimentos que são intangíveis”.
Além das atrizes mirins Laura Brandão e Serena, o elenco de A Natureza das Coisas Invisíveis conta ainda com Larissa Mauro (de O Vazio de Domingo à Tarde), Camila Márdila (de Que Horas Ela Volta?) e Aline Marta Maia (de Pedágio). Ao ser questionada sobra a ausência de personagens masculinos e a predominância de personagens femininas, Rafaela explicou que não foi intencional: “Foi algo de que me dei conta, que era um filme de mulheres, e começou a se tornar mais consciente. Vivemos em um mundo em que as crianças são as responsabilidades das mães, é o status. Então, em certo momento, percebi que estava diante de um filme sem uma figura masculina. É sintomático, pensando socialmente, a organização dessas famílias em torno de pais ausentes e por que nenhum momento isso não é falado no filme”.
Rafaela até brincou de que havia apenas dois homens, um que morre rapidamente e um que está morto desde o início do filme, e aprofundou-se na discussão da maternidade de Antônia e Simone: “Eu sinto que existe uma força, uma relação criada a partir do olhar de uma para a outra, entre as duas mães que estão se dando as mãos. Não precisa de muita explicação para o público compreender”.
Uma das qualidades de A Natureza das Coisas Invisíveis é o elenco mirim, que, diferente de atores adultos, exige uma direção diferente. “Como é dirigir crianças com um tema que é natural, ao mesmo tempo que difícil?”, pergunto. “A gente partiu do ponto de vista de que é um filme e que este acabará e não poderá provocar um trauma na vida delas. Para abordar o filme com as crianças, teve a participação das famílias. As cenas com uma maior complexidade foram contadas na medida que aquela criança, no ofício de atriz, precisa saber a respeito daquilo. As atrizes sabiam que estavam contando a história daquelas personagens, e não delas próprias”, explicou Rafaela.
Apesar de as filmagens terem contado com acompanhamento psicológico, Rafaela surpreendeu-se com a reação de Laura Brandão durante a primeira exibição do filme na Berlinale: “Não houve nenhum momento em que as atrizes se assustaram com a história. Ontem, porém, vi uma cena em que a Laura tapou o olhar e perguntou ‘Tia Rafa, o que é isso?’”.
A forma carinhosa com que Laura e Serena apelidaram Rafaela, Tia Rafa, não escapou a meu olhar, assim como o elemento temático de utilizar as coisas dos mortos. É um elemento que me marcou, não apenas por causa da sequência em que Laura explora os pertences de pacientes falecidos, mas sobretudo porque a personagem sobreviveu em razão de um transplante cardíaco, que fez sua vida estender-se além de um ciclo. “O que significa, para você, usar as coisas dos mortos”, perguntei à Rafaela: “Esse elemento comunica-se com a ideia de que a vida é um ciclo. Estamos interligados. É um filme que fala do transplante, mas não em termos de procedimento, sim de alguém que tem um traço de quem veio antes, que prende a personagem a uma vida que veio antes. Esta dentro da metáfora daquela árvore mágica, da cicatriz, das galáxias”.
Rafaela concluiu não ter desejado um filme cabeçudo, mas simples: “A simplicidade traz uma memória, um sentimento, e que você completa com o significado que traz dentro de si”.
A Natureza das Coisas Invisíveis deve estrear nos cinemas brasileiros apenas no segundo semestre, mas antes deve ser apresentado em festivais nacionais. Recomendo ficarem de olho aberto!