Na década de 40, Mamie Clark realizou um experimento revolucionário em que exibiu bonecas brancas e negras para crianças entre 3 a 7 anos e formulou perguntas simples, do tipo ‘qual boneca você mais gosta de brincar’, ‘qual boneca é mais legal ou feia’ ou ‘qual boneca parece com você’. O resultado desse experimento, indispensável para que a Suprema Corte norte-americana declarasse a inconstitucionalidade da segregação racial na escola, também é essencial para compreender acerca da representatividade e diversidade na construção da imagem que se tem de si, no amor próprio. Deste modo, quando a diretora Lagueria Davis confessa ‘odiar bonecas’, a gente compreende que a fonte do ódio dela é a ausência de simulacros, digamos assim, que representam bem a identidade negra em vez de substituí-la por uma identidade branca.
Até porque Lagueria é neta de Beulah Mae Mitchell, que trabalhou sua vida inteira na Mattel de Ruth Handler, onde foi promovida da linha de montagem à concepção das primeiras bonecas negras produzidas na marca. Há 14 anos, após conhecer o passado da avó, Lagueria iniciou o desenvolvimento do documentário A Primeira Barbie Negra e o resultado é competente em retratar a cronologia da representatividade no segmento, a tomada de consciência pela comunidade negra e a crítica ainda necessária para que haja igualdade. O documentário reconhece o óbvio: a criação de bonecas negras é uma criação capitalista, antes de ser social, com o objetivo de alcançar um grupo ainda não consumidor das bonecas tradicionais da linha Barbie, apesar de isto não significar que transformações sociais não podem ser induzidas economicamente.
Embora já houvesse bonecas de pano, as primeiras bonecas negras criadas pela Mattel só surgiram no fim da década de 60 e não eram denominadas Barbie, mas suas amigas. Isto não é muito diferente para quem acompanha comédias românticas de antes e hoje e percebe que as mulheres negras e pardas são coadjuvantes de protagonistas brancas, e se há exceções é somente para confirmar a regra. Mas por que Barbie, não Shindana, Shani ou outra personagem negra? Porque a Barbie é a heroína de sua história em um período em que muito era negado à comunidade negra (ainda é, contudo). Deste modo, A Primeira Barbie Negra desenvolvida em 1980 sob a criação de Kitty Black Perkins, que herdou o posto de Beulah, é uma vitória não por adotar um ícone branco, mas dividi-lo e dele iniciar uma caminhada árdua e longa em que os brinquedos com que as crianças brincam ajudam-nas a construir a sua identidade e a inspirá-las a sonhar.
“Você não saberia que poderia ser se não tivesse visto?”, é uma pergunta retórica e eficaz, e se crianças negras podem sonhar em ser a próxima Shonda Rhimes, Kerry Washington - cujos figurinos em Scandal são coerentes com o de uma Barbie -, a deputada Maxine Waters ou a bailarina Misty Copeland é somente porque estas Barbies da vida real (são assim denominadas nos cards que as apresentaram) as inspiraram e mostraram que há um futuro além de ser ‘a amiga da Barbie’ ou de ser vítima de opressões comunicadas através de artes. A Barbie, um signo de beleza e sucesso, é um veículo apropriado para esta identificação, sobretudo quando incorpora atributos que as individualizam (ex. diferentes tons de pele negra, diferentes corpos).
Entretanto, o documentário eventualmente parece ser uma peça publicitária da Mattel de forma a explorar a estrutura organizacional da empresa e revelar a “consciência” da empresa. Eu até gosto do fato de o título narrativo ser resolvido logo no primeiro terço do documentário, sem que haja a construção dramática e conflituosa que poderíamos existir em um primeiro momento, e que, a partir dele, surja uma discussão bem maior sobre representatividade, mas a sensação é de que Lagueria Davis passa tempo demais exaltando a Mattel do que as mulheres que empurraram a ideia adiante. E ao exaltar a empresa demasiadamente, acabamos também ‘comprando’ a justificativa para que sua postura não seja mais agressiva em termos de progresso: a mudança precisa ser lenta e gradual, explica um dos funcionários da Mattel, um aspecto com que posso concordar facilmente, só porque não sou eu que estou em desvantagem dentro do sistema. Quem está quer mudanças para já, não para amanhã ou para a próxima geração.
Lagueria Davis redime-se quando revela diferenças no marketing de Barbies brancas e negras, ou (no melhor momento) escuta o que as crianças tem a dizer sobre o tema de um jeito autêntico que só crianças são capazes de fazer ou ainda explora o atual estado das animações inspiradas na Barbie, que insistem nos mesmos erros já feitos em rom-coms ou adotam uma atitude paternalista que tampouco ajuda. A Primeira Barbie Negra é provocador em muitas dimensões, e a maior delas é a informação, além de explorar o elemento pessoal que individualiza a jornada, bem além de datas e cabeças falantes, e decisões estéticas que humanizam o mundo de plástico onde habita a popular boneca.