Sabe a cena memorável de Brazil – O Filme, de Terry Gilliam, em que uma mulher tem o rosto puxado e repuxado durante um procedimento estético, em que a arte põe-se a serviço do abjeto? Pensei muito nesta cena em uma passagem de A Substância, o mais recente trabalho da diretora e roteirista Coralie Fargeat (de Vingança, que adoro), e que tematiza, a partir da linguagem do horror corporal, a violência etária e estética contra as mulheres dentro da indústria do entretenimento, obrigadas a “permanecer” jovens para atender o anseio de produtores e acionistas, que desejam mulheres entre 18 a 30 anos e que saibam sorrir.
Por isso, ao completar 50 anos, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) já passou do prazo de validade da indústria da televisão. O marco etário “obriga” o sonso produtor Harvey a demitir Elisabeth do programa de ginástica que apresentava na televisão. A escalação de Dennis Quaid é acertadíssima, pois sua idade ainda mais avançada apenas reforça a violência de gênero tematizada pela linguagem do horror. E embora seja podre de rica, Elisabeth entra em depressão e questiona aquele corpo alienígena e ‘monstruoso’ que encara no espelho – o fato de Demi Moore ter sido um símbolo sexual da década de 80 e 90, amplifica a crítica narrativa e obriga o espectador a repensar o parâmetro de belo que a estética tem imposto à arte (a atriz está belíssima aos 61 anos, e apenas não será reconhecida na temporada de prêmios se mantido o preconceito que há com o horror).
Elisabeth descobre uma oportunidade para resgatar aquela que acredita ser a melhor versão de si, um procedimento clandestino o bastante para estar escondido num beco saído oriundo do mesmo fluxo criativo de quem pensou o 7º andar e meio de Quero Ser John Malkovich. O procedimento é agressivo com instruções que devem ser respeitadas à risca a fim de evitar efeitos colaterais, e resulta no surgimento a partir da matriz, que é Elisabeth, de Sue (Margaret Qualley, em um papel que explora o charme limítrofe da atriz), a sua versão jovem que pode substituí-la à frente do programa. Elisabeth e Sue são a mesma pessoa, no fim das contas, e cada uma pode estar “ativa” por 7 dias antes de devolver o controle à outra.
É aí que A Substância praticamente descende em um macabro pesadelo de advertência, contrário a obsessão (frise-se: obsessão) por procedimentos estéticos que deformam e devoram a pessoa de dentro para fora. Primeiro, Sue experimenta um dia a mais do que deveria - afinal, como que uma artista no auge da fama pode dar-se ao luxo de não trabalhar por metade do tempo? -, e isto provoca alterações em Elisabeth, que reforça a canibalização de sua autoestima. A situação evolui de modo previsível, textualmente, e imprevisivelmente, no campo das ideias e imagens, com a exploração extrema de sua premissa a fim de criar um horror corporal verdadeiramente repulsivo. Tão repulsivo e chocante que deixaria bastante orgulhoso o papa do subgênero, David Cronenberg, e a homenagem a A Mosca é compreensível – uma vez que os filmes tinham personagens que procuravam a versão perfeita de si mesmos e sofriam as consequências de desafiar o indesafiável.
Sem entrar em detalhes, Fargeat inspira-se em um misto de O Retrato de Dorian Gray e A Morte lhe Cai Bem, com elementos visuais remissivos a Carrie, A Estranha e Cinderela, e explora a dicotomia entre Branca de Neve e a Rainha Má (que oferece a maçã), em que estas personagens na realidade são faces de uma mesma pessoa separadas por um espelho. Este espelho, o “vilão” ideológico da narrativa, é uma forma de expressar que ninguém pode fugir de si mesma – sendo isto a sua imagem. Este espelho revela, num outdoor em frente à cobertura onde vive Elisabeth, o motivo de sua frustração: o êxito de sua versão mais jovem de que jamais poderá compartilhar. Neste sentido, Margaret Qualley conjuga, eficazmente, um olhar e sorriso sedutores, maliciosos ou debochados transformando a sua matriz, de maneira simbólica, na sua ‘diarista’.
A construção da tensão entre as personagens é trabalhada de formas inteligentes por Fargeat, como no momento em que Elisabeth tenta escapar de Sue, mas o olhar dela a acompanha por reflexos perfeitamente perturbadores, como o distorcido refletido em uma maçaneta. Curioso o fato de que a cobertura onde Elisabeth mora não lhe confere o privilégio de espiar o mundo de fora de modo voyeur desinibido, mas de ser invadida pelos olhares externos revelando qual o preço da exposição. A fotografia de Benjamin Kracun alonga e distorce os cenários luxuosos e espaçosos construídos por Stanislas Reydellet – como o tapete do estúdio ecoou O Iluminado na geometria das formas.
E enquanto a maquiagem é o elemento essencial para tornar monstruosa a obsessão estética, cujo efeito emocional você é plenamente capaz de expressar só acessando o banco de dados da memória (o que faço nesse minuto enquanto revisito esse texto), o desenho de som torna tangível e incômoda a obsessão e a monstruosidade. Ainda que você feche os olhos para o grotesco, o som materializa o que você deseja escapar, e eu posso afirmar ter feito isso, já que alguns momentos convidam a não olhar a imagem (o nosso espelho). A sutura, a seringa e o êmbolo enchendo um recipiente específico, o nascimento do corpo de um casulo, ou mesmo a violência de arrastar o corpo batendo com a cabeça no batente são momentos em que o horror manifesta-se mesmo àqueles que optaram em desviar o olhar.
Elogios ainda devem ser feitos à Demi Moore, cujos desespero e melancolia devoram o amor próprio e bom senso, tornando a personagem vítima das soluções milagrosas oriundas da opressão praticada por quem é dono da imagem: os homens. Fargeat usa este aspecto posicionando só homens atrás de câmeras nas filmagens do programa de Sue, além de apostar na figura ridiculamente cruel de Dennis Quaid. Enquanto houver exclusividade de homens comandando a criação da imagem mítica, então continuará existindo pessoas iguais a Elisabeth que perderão o espaço conquistado por não serem “bonitas” e “jovens” o bastante.
A Substância é certeiro no que critica, e especialmente em como critica, mas olha, é melhor ter estômago forte ou ir de barriga bazia.
Crítica originalmente publicada durante a cobertura do 77º Festival de Cannes.
Demi Moore foi sempre uma Atriz que admirei tanto pela beleza quanto pelo talento interpretativo. Quando soube este filme protagonizado por ela, logo percebi que se tratava de algo com imensas possibilidades dela se entregar totalmente ao Papel com toda a alma. Digo isto porque ela pode ter se sentido refletida na própria Personagem à qual dá vida, o que deve ter adicionado um vigor interpretativo autenticamente sublime. Gostaria de assistir no cinema, mas, se não der, encontrarei uma oportunidade para conferir mais à frente.