Com o malabarismo de coisas que realizo diariamente, talvez A Teia não tivesse sido a minha primeira escolha de filme. Aí surgiu uma oportunidade de entrevistar o diretor, roteirista e produtor Adam Cooper, a minha primeira entrevista em inglês, e não tinha como negar.
O roteiro é adaptado do livro The Book of Mirrors, do escritor romeno E.O. Chirovici, e cinematograficamente retrabalhado pela perspectiva do ex-detetive de homicídios Roy Freeman (Russell Crowe), um sujeito solitário, recém submetido a um tratamento para a doença de Alzheimer. Enquanto atravessa as etapas do pós-operatório, Roy responde ao apelo de um condenado no corredor da morte para reexaminar o crime pelo qual foi sentenciado: o assassinato do professor universitário Joseph Wieder (Marton Csokas), cujo campo de pesquisa acadêmica estava relacionado à memória. Roy, que investiga o crime pela primeira vez, tem “auxílio” do ex-parceiro Jimmy (Tommy Flanagan). E por que as aspas? Porque Roy não tem como diferenciar quem prefere conservar o passado enterrado daqueles que o ajudam a exumá-lo. Mesmo que tivesse meios de diferenciar, não teria meios de identificar as razões de fazê-lo. Roy apenas pode confiar no próprio instinto, que talvez nem seja tão confiável assim.
A Teia é, então, um whodunit com pinceladas de filme noir em que Roy investiga, como se fosse a primeira vez, um crime já investigado, com a diferença de que o detetive não é mais o mesmo. O roteiro obriga-me a refletir a respeito da distribuição de informação nesse tipo de filme, e como permanecer ao lado de Roy na narrativa inteira parece-me uma decisão mais acertada do que nos colocar atrás ou à frente do detetive em termos de informação. O espectador é igual a Roy, não tem memória, não sabe onde encaixam as peças que obtém, não sabe de onde viu aquela pessoa, e mesmo a materialização em forma de imagem, em uma subtrama paralela, é realizada por um documento obtido (o manuscrito de um livro). A falta de memória não é apenas material, relacionada a fatos e eventos específicos, é também emocional, pois não sabemos se podemos confiar, ou não, em Jimmy e, na mesma linha de raciocínio, nem sequer sabemos se confiamos em Roy. Estamos presos a ele, porque o homem condenado injustamente também está de certa forma, mas isso não significa que podemos confiar no Roy do passado do mesmo modo com que confiamos no Roy do presente.
A insegurança diferencia A Teia de filmes policiais procedimentais convencionais. E, quando mal percebemos, estamos julgando as pessoas pelas suas aparências, mais do que por razões concretas. Tommy Flanagan tem cara de vilão? Então já o descartamos na lista de contatos. Quanto à Laura Baines (Karen Gillian, a Nebulosa de Guardiões da Galáxia), rapidamente lembramos das damas fatais (as femme fatale) manipuladoras da Hollywood clássica; a maneira com que emprega sua sensualidade para obter o que deseja, por exemplo. Mas, de novo, será isto só fruto de insuficiência de informações? Pois a construção que é feita da personagem tem por ponto de partida um manuscrito de Richard (Harry Greenwood), com quem Laura relacionou-se, e pode estar tingido e desvirtuado pela subjetividade com que Richard experenciou o relacionamento. O ato de reconstrução do crime em A Teia implora uma objetividade material repetidamente sonegada pelas subjetividades dos envolvidos no crime ou à sua margem. Até mesmo Roy, que tenta permanecer imparcial, não pode evitar as próprias subjetividades, pois o procedimento pelo qual passou não tem garantia alguma.
A direção de Adam Cooper harmoniza, na maior parte, a busca por objetividade num meio permeado por subjetividades. Ao reconhecer uma interferência proposital ou acidental do indivíduo na construção da memória, Adam Cooper complica o próprio ato de investigar, pois, diferentemente do quebra-cabeça sobre a mesa sala de Roy, o crime não é somente um ato de paciência de encontrar a peça que se encaixa, pois os encaixes dos personagens e eventos mudam conforme os interesses. É óbvio que, para todos os eventos que você imaginar, usando a analogia da linguagem cinematográfica, há um plano mestre objetivo que revela quem fez o quê, em certo momento do tempo e espaço. Mas este plano mestre não existe quando a quantidade de informações que nos dão é insuficiente.
Nesses termos, é lamentável que A Teia precise de um desfecho protocolar, que dê ao espectador e a Roy as respostas que desejam de um modo convincente o bastante que sabemos ser verdade. É até frustrante, para ser sincero, que uma narrativa que trata de memória de um jeito cético e até desapaixonado, expressado até mesmo na escolha de lentes que deformam os ambientes, pois também é deformada a memória de Roy, e em cores lavadas, sem saturação e opressivas, senão pelo verde expressivo de Laura, tenha acreditado ser uma boa ideia responder inequivocamente ao mistério proposto. Eu até entendo de onde veio o impulso, embora contradiga, a meu ver, o que a narrativa tinha de melhor, manifestado na pergunta que Roy faz a Jimmy: “Eu fui um bom policial?”.
O que é ser um bom policial? É ter uma média representativa de casos solucionado ou é reconhecer a falibilidade do processo investigatório, corrompido por peças faltantes ou agentes cujos interesses podem sufocar a verdade, e permanecer íntegro e justo no caos da memória? Russell Crowe é hábil em expressar essa dicotomia no Roy-passado e no Roy-presente, subtraindo diálogos expositivos, em favor da presença dominante de cena e da capacidade que tem de expressar um tipo de sujeito em quem não confiamos inteiramente. E se confiamos, é só na proporção que permite a sua condição clínica.
Assim, é triste que algo nessa composição seja desperdiçado pela ânsia por respostas - tão habitual em filmes do gênero produzidos ou distribuídos por Hollywood - quando a resposta está na busca, na oportunidade que o destino concedeu a Roy de ser um bom policial.
A Teia estreia nos cinemas brasileiros quarta-feira, 1º de maio.
Assistam a minha entrevista com o diretor Adam Cooper abaixo: