Na obra Paul Verhoeven, de Rob van Scheers, com a tradução de Aletta Stevens, que acompanha a carreira do diretor holandês até o lançamento de Showgirls (1995), uma informação que desconhecia chamou a minha atenção para compreender a obra do diretor provocador.
Paul Verhoeven denomina os três primeiros filmes hollywoodianos, deliberadamente não reconhecendo Conquista Sangrenta (1985) como uma apenas obra norte-americana, de Trilogia da Psicose, composta por narrativas que não poderiam ser mais diferentes umas das outras: RoboCop (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992). O que estas narrativas têm em comum é encarar realidades paralelas.
Em RoboCop, o ciborgue título é a síntese entre o cadáver do Policial Murphy e o que a ciência pode realizar no futuro. Um elemento temático é a reaquisição da consciência de quem se foi e a imposição de quem se deve ser - sei que não estou soltando spoilers de um dos mais populares filmes da década de 80, ao recordar que RoboCop reconhece ser Murphy. O ciborgue concilia as realidades paralelas, a humanidade perdida, ainda conservada em lampejos de memória, e o predicado contemporâneo, a existência meio humano, meio máquina.
Já em O Vingador do Futuro, Arnold Schwarzenegger interpreta Doug Quaid, operário do setor da construção civil e que é levado a acreditar ser um agente secreto por causa de um implante de memória que lhe permite viajar à Marte para ser a versão sonhada de si. A obra é ambígua, aí enfatizando as realidades paralelas: Doug está só vivendo a memória implantada ou, de fato, está descobrindo quem de fato é, uma identidade que se manteve escondida sob a patina de um funcionário da construção?
Finalmente, em Instinto Selvagem, a escritora Catherine Tramell é uma personagem cuja ambiguidade provoca também a cisão entre realidades paralelas: Catherine é a assassina em série que transforma os seus crimes em obras literárias ou é somente a escritora fria e calculista que afirma ser? Diferentemente dos anteriores, Catherine é produto do olhar do detetive Nick Curran, que pode enxergá-la da maneira que for, e que mesmo assim continuará rendido à sedução da personagem. Instinto Selvagem, ao menos o original, mantém aberto o desfecho, não oferecendo um veredito que iremos aceitar sem maiores questionamentos.
“Talvez tenha algo a ver com a minha vinda da Holanda e o fato de eu mesmo ter duas realidades, que são igualmente importantes para mim. Nos meus filmes não é uma questão de escolher entre essas duas linhas, mas de tratá-las igualmente. Você poderia até afirmar, considerado meu interesse científico, que a ideia foi adaptada da mecânica quântica, em que o ponto de partida para o pensamento atual são os múltiplos universos e as múltiplas realidades. Na maneira como eu organizo todos os dias realidades, tais argumentos sempre desempenham um papel”, explicou Paul Verhoeven.
Enquanto a obra europeia de Paul Verhoeven era caracterizada por realismo explícito, provocativo e até sensacionalista, reveladora do belo e abjeto, da violência e do sexo, e do homem fato, não do homem idealizado ou cujas arestas tenham sido aparadas para sensibilizar um comitê censor, a obra inicial hollywoodiana encontrou no subterfúgio da entrelinha uma maneira de ecoar uma valência dual. Um ser e não ser simultâneo e não passível de ser descartado.
Rob van Scheers recupera, com a ajuda de Paul, que a gênese da cisão entre realidades é o evento havido no passado e que se manteve impresso, explícita e metaforicamente, por toda a obra: a relação conturbada com a religião organizada (abordada ao longo do Capítulo 4, Entre o Céu e a Terra), particularmente no ano de 1966, quando deixou o serviço militar obrigatório com a ambição de se tornar diretor de cinema, mas teve um choque de realidade ao lado da esposa Martine Verhoeven.
“(…) uma mulher se aproximou de mim, um membro do que mais tarde se revelou um grupo religioso do tipo pentecostal chamado Stromen van Kracht (Fluxos de Poder). Ela empurrou na minha mão um folheto que dizia: ‘Se você está procurando por Deus’ - e de alguma forma isso me perfurou profundamente, porque eu estava preocupado com a Bíblia naquela época de qualquer maneira. A magia da religião era algo que fluía naturalmente daquilo que tanto me fascinava na adolescência: extraterrestes, ocultismo, hipnose, coisas assim. De qualquer forma, eu segui o conselho porque pensei que poderia ser a solução para os meus problemas”. (Verhoeven)
Na mesma semana, Paul foi à igreja pentecostal: “Foi uma experiência bem emocional. O mais estranho era que você poderia perceber fisicamente a descida do Espírito Santo, como se um raio laser cortasse pela minha cabeça e meu coração estivesse em chamas”. Mas a relação esquizofrênica de Paul com o cristianismo, a sua formação científica, o fez procurar as explicações racionais que influenciavam na sensibilidade individual.
Na fileira atrás da sua, a mulher que o havia convidado para a cerimônia ‘traduzia’ os diálogos em línguas: “Eu não deveria me tornar um filme afinal de contas - essa era uma profissão tão decadente - não, surgiu dela, sem dúvida, a tradução pré-pronta da mensagem divina que Deus queria que eu fosse a países distantes para pregar o evangelho. Ele tinha me escolhido para uma missão na África”. Isso aconteceu durante o período conturbado da vida de Paul e Martine: ela havia engravidado fora do casamento, e os jovens adultos anunciaram às famílias que se casariam (mais tarde, sob recomendação de um amigo médico, Paul e Martine abortariam a primeira criança).
Com o peso retirado dos ombros, Paul e Martine foram ao cinema assistir a King Kong:
Antes do filme, o cinema mostrou alguns anúncios, e um deles disse: “No roteiro da sua vida, Deus desempenha o papel principal”. Achei que isso não poderia ser uma coincidência. Então King Kong apareceu e se transformou num anjo vingador do Antigo Testamento. Ele veio exigir satisfação de mim, claro - tudo se encaixava bem. King Kong pisoteou pessoas, carros, uma cidade inteira, e eu não conseguia mais distinguir entre o cinema e a realidade. (Paul Verhoeven)
Diante da série de acontecimentos, Paul entrou em crise emocional e dela deixou com a decisão de se transformar em artista. Uma crise que atravessou, em menor potência, ao deixar a Holanda em direção aos Estados Unidos, e cuja relação conturbada com a religião manifesta-se até à sua obra mais recente, Benedetta (2022), com uniformidade dentro dos temas ou símbolos trazidos pelo diretor a seu cinema.
É uma anedota para reforçar o convite para se matricular no Clube do Crítico, no qual vamos estudar a vida e carreira de Paul Verhoeven e David Lynch. Deixarei o link para que vocês visitem a página que contém informações sobre ementa, filmes, calendário e investimento.