O Clube do Crítico 25, Cinema Brasileiro, teve início no sábado (9) e na segunda (11) passados com a aula sobre A Vida Invisível [de Eurídice Gusmão], o longa-metragem de Karim Aïnouz baseado no livro de Martha Batalha e premiado, ineditamente, com o Prêmio Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2019. O filme também representou o Brasil na disputa do Oscar 2020.
De forma bem breve, para contextualizar o que quero ensinar, o filme conta a história de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler), que abandona sua casa para viver uma paixão avassaladora com o marinheiro grego Yorgos. Quando retorna, grávida, Guida é condenada e excluída da família pelo pai, Manoel. O seu contato com a irmã, recém casada com Antenor (Gregório Duvivier), acabaria ali, já que suas cartas não chegam ao conhecimento da irmã, que mora na mesma cidade, mas nunca a vê.
Karim Aïnouz denominou a adaptação de Melodrama Tropical, estudando e adaptando, à seu cinema, o estilo de Douglas Sirk, Wong Kar-wai, Rainer Werner Fassbinder e até Pedro Almodóvar. É uma obra que pulsa o amor saudoso entre as irmãs e as injustiças e violências praticadas pela sociedade patriarcal contra os anseios das duas. A direção é feliz em incorporar atuações expressivas, dramas intensos, cores saturadas, efeitos e trilha sonora de modo a registrar a experiência feminina no Brasil dos anos 50.
A aulinha de hoje será como Karim é hábil em, empregando uma mesma decupagem para registrar, em um caso, objetivamente um fato; e no outro, subjetivamente uma emoção.
O primeiro trecho é este abaixo e sucede o casamento de Guida, no qual é registrado o processo de mudança da casa dos pais ao domicílio conjugal com Antenor.
Vamos ao que interessa: a cena assume o ponto de vista de Eurídice, que permanece à distância na cena, observando e instruindo cautela para o manuseio do piano (a forma com que expressa alegrias e tristezas, pois sua fala é ignorada pelo pai, pelo marido). É uma cena objetiva, no sentido de que registra, materialmente, um fato: a mudança dos objetos e móveis realizada pela família e por profissionais contratados para tal.
A câmera inicia em um plano fechado no rosto de Eurídice, que é quem observa, até movimentar-se para registrar o que Eurídice vê, mantendo-a parcialmente no quadro como o sujeito dono do olhar. Fora isto, a trilha sonora clássica abafa os demais sons externos (da rua, ex.).
Essa cena será desafiada mais à frente por outra com uma decupagem semelhante, logo após Eurídice receber a notícia de que estava grávida. Não é uma notícia feliz, porque isto impacta o desejo de realizar a prova de admissão do Conservatório de Música com que sempre sonhou. Compare:
São cenas análogas, mas muito diferentes, a começar que esta não é apenas um retrato objetivo de Eurídice subindo as escadas que levam à sua casa, mas subjetiva das dores e angústias inauditas que são registradas em breves 7 segundos.
Vamos começar da parte mais evidente: o som do pisar de Eurídice a cada degrau não é um elemento realista, mas expressionista, e é acrescido do som das crianças brincando no pano de fundo (não as vemos; apenas veremos as tais crianças no terceiro ato, anos e anos depois). As crianças são uma maneira de ironizar dramaticamente a história da personagem, que não rejeita a maternidade, embora a rejeite naquele momento de sua vida pois isto inevitavelmente a impediria de concretizar sua individualidade através de seu sonho.
Notaram também que não há arranjo musical? Como poderia haver se é isto que está sendo retirado dela?
Há um elemento adicional. Na cena inicial, nós e Eurídice compartilhávamos o olhar; agora, Eurídice tornou-se um objeto de nosso olhar. Não muito diferente, em alegoria, do que os objetos movimentados na cena anterior. A maternidade fará Eurídice ser tão imóvel quanto o piano dentro de sua casa, transformou-se em um objeto que cumpriu uma função que a sociedade espera: ser mãe.
A subjetividade da passagem é uma opção eficiente para registrar o momento em que Guida perde sua subjetividade.
Essa é, entretanto, apenas a minha interpretação. Uma que estudar cinema oportuniza a cada um de vocês. E, em breve, abro inscrições para a aula degustação de O Bandido da Luz Vermelha no Clube do Crítico.