Ainda Estou Aqui
Em 1971, uma ação terrorista estatal sequestrou o ex-deputado Rubens Paiva, esposo de Eunice e pai de cinco filhos (dentre os quais o escritor e roteirista Marcelo Rubens Paiva, cuja obra literária é o material original para essa adaptação), desfazendo o laço com que foram tecidas as sólidas relações familiares. Coube à Eunice sozinha manter íntegro, do jeito que pôde e diante de obstáculos e incertezas, a estrutura familiar em Ainda Estou Aqui. É um reencontro com o diretor Walter Salles, uma década depois de dirigir o documentário Jia Zhangke, um Homem de Fenyang, e ainda mais de sua última ficção, a menos amada do que deveria ser adaptação de Na Estrada, e é muito bom vê-lo à frente de uma obra cujas ansiedade e expectativa produzidas nos festivais de que tem participado (sobretudo o de Veneza, no qual recebeu o prêmio de melhor roteiro) não diminuiu em nada o impacto dramático e histórico do filme.
É a história de uma família violentada por forças externas e irresistíveis, e não há nada mais universal do que isso, pois, apesar de ser de classe média alta, é representativa de muitas famílias que passaram o mesmo durante os 21 anos de Ditadura Militar. Walter alimenta a família Paiva em um quarto inicial solar, praiano, musical e com a presença de amigos: Eunice não é a protagonista até então, papel dado ao expansivo e bonachão Rubens, com um copo de uísque e cigarro na mão e a capacidade de contagiar com sua alegria e a naturalidade da atuação de Selton Mello os espaços onde está. São instantes que ficam registrados na cabeça de um espectador, ora por lembranças individuais (eu não pude evitar não pensar na minha família antes da morte de meu pai, quando tinha 5 anos), ora pela ciência da iminência de uma tempestade, fazendo com que desejemos que esses momentos durem até mais do que o tempo concreto.
É onde está a força de Ainda Estou Aqui: o desejo de reconstruir aqueles momentos que ficam inscritos no passado e que jamais podem ser mais do que memórias de quando a vida parecia mais fácil. O ato de fechar as cortinas é o ato que encerra o nosso contato com aquela existência idílica: onde havia música, há silêncio; a trilha sonora e musical é invocada apenas em momentos pontualíssimos. Onde havia sol e praia, há só sombra e a “tempestade”. Não é uma divisão justa, penso comigo, que passemos menos tempo na ausência do que na presença, mas a Ditadura Militar certamente não era justa. Um bom exemplo para compreendermos a sobriedade da direção e das interpretações está na cena da despedida, da rapto de Rubens Paiva: no lugar de “pintar” dramaticamente essa sequência, Walter Salles a imagina como um ato protocolar, cujas consequências trágicas jamais seriam conhecidas naquele momento. Os personagens não sabem que estão despedindo-se para sempre, mas os atores, sim! E a encenação nunca vacila para atender um desejo inerente do espectador por drama. Tudo é feito corriqueiramente e não acintosamente.
É a mesma abordagem dos agentes da repressão. Em vez de estereotipá-los, ao menos, torná-los convencionais, o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega imagina-os como pessoas normais, realizando ações anormais para um Estado monstruoso. Embora não haja como negar que a presença deles na residência dos Paiva provoque apreensão, os agentes procuram dissuadir isso ao máximo, conservando o tom de voz, bisbilhotando pessoas e objetos de um jeito organizado, e até no quartel militar do DOI-CODI, onde Eunice e a filha foram mantidas, há quem ouse discordar dos métodos adotados. Não é um retrato óbvio da repressão (e ainda bem que haja filmes menos maniqueístas sobre esse tema), e Walter Salles não perde a oportunidade de apontar o dedo (digo a câmera) ao responsável pela Ditadura Militar naquele momento, no interior de uma instituição bancária, o que é irônico para dizer o mínimo.
Operando a partir da linguagem de contenção, uma das possíveis durante a repressão, Ainda Estou Aqui expressa-se contida e secretamente. Rubens blindou integralmente a família de suas ações humanitárias, e isso é reproduzindo deixando-nos na ‘escuridão’, apenas desconfiando das ligações tarde da noite ou dos momentos em que o patriarca trancava-se no escritório. A ideia do segredo para proteger o outro é herdada, digamos assim, por Eunice, que evita que os filhos (os mais caçulas, principalmente) entrem em contato com a tragédia. E a atuação de Fernanda Torres é uma coroação do esforço da direção: a princípio, Fernanda é a esposa que está nos bastidores, cuidando para que a rotina da família seja respeitada. Ela não é uma antítese de Selton Mello, embora seja inegável que ele atraía mais o olhar pela sua personalidade. Depois do rapto, Fernanda transforma-se em uma represa praticamente intransponível. Ela sofre, mas por entre a rachadura que não vemos, ou se vemos, é só uma lágrima tímida incontrolável. É bom ver forças assim, forças que emanam de dentro e que mal sabíamos que tínhamos.
Rubens não lerá isso, mas eu também tenho uma Eunice, uma Arlete, que manteve e, a despeito da idade avançada, até hoje conserva a integridade de uma família de 4 filhos, depois da morte de seu marido (curiosamente, um engenheiro civil também). Não foi a Ditadura Militar, mas o coração que parou no momento que deveria ter batido, apesar de a consequência da violência ser a mesma: a fragmentação familiar. Ainda Estou Aqui mexe conosco facilmente porque é universal, porque é feito por artistas que respeitam o sentir e a memória daquela família e, ao fazê-lo, a memória de um Brasil que jamais devemos esquecer.
Os Malditos (The Damned)
O vencedor do prêmio de Melhor Direção da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano, Os Malditos é conceitualmente muito interessante na tentativa de capturar um instante de tempo específico estadunidense, em meados do século XIX, durante a Guerra Civil, a partir do ponto de vista e da rotina de uma companhia do exército no país. Nós os assistimos conversando sobre a guerra, jogando beisebol e pôquer, limpando com diligência armas de fogo, escovando os pelos dos cavalos, ou vigiando a planície onde montaram as suas barracas durante o inverno que promete ser rigoroso. Muito acontece e é revelado com maturidade pela narrativa de Roberto Minervini, a partir de diálogos expressivos de crenças e entendimentos por aqueles homens, apesar de ser impossível ignorar o peso do tempo, na narrativa cujo tédio é um elemento estético - um elemento massacrante.
Apesar de ter apenas 88 minutos, Os Malditos pareceu dilatar o tempo além de minha paciência. E, óbvio, eu entendo que Minervini tenha produzido uma imersão naquele momento característico em que o tempo não passaria mais rápido nem que estivesse calçando os sapatos do Sonic ou do The Flash. Nós estamos assistindo ao mundo por aqueles olhos e sentindo-o com aquela sensibilidade específica, realçada em diálogos bem formados, em que muito é dito até para mascarar uma espécie de niilismo, ou de fundamentalismo ou mesmo de pragmatismo. Nada acontece. Mas, quando acontece, por estarmos tão filiados ao ponto de vista dos personagens, não compreendemos bem o que está acontecendo como se estivéssemos em batalha. Só escutamos os disparos e o clarão após o disparo, mas o “inimigo” - quem quer que seja - existe exclusivamente como uma ideia disforme, em um pano de fundo inacessível.
Fotogênica e fotograficamente, portanto, Os Malditos adota uma subjetividade coletiva em que somos todos ali. Tudo é vivido, sentido e enxergado por aqueles soldados, num rigor formal admirável, embora reforce o tédio pela monotonia imagética. O horizonte cinematográfico está realçado por tomadas baixas que revelam a diminutez do homem engolido pela natureza que o cerca, uma natureza que fica ainda mais indistinta após a neve cair. Já a profundidade de campo é rasa, trazendo ao primeiro plano os soldados e deixando o borrão no pano de fundo, o desconhecido mantém-se assim. É admirável - o que justifica o prêmio na Um Certo Olhar - o comprometimento de Minervini com a forma eleita, mesmo que isso cobre um preço.
Presos no desconhecido incerto e não revelado, Os Malditos é uma frustração que se perpetua, mesmo que seja uma das mais belas proporcionada pelo cinema nesse ano. A forma natural com que a violência é introduzida e cinematograficamente rejeitada remete à cena prólogo em que lobos abocanham a carcaça de um cervo, em um plano longo, que dessensibiliza ao negar os ‘prazeres’ cinematográficos imediatos: o ato da caçada, a violência, o sangue. O que era o cervo está lá, e os lobos estão entediados e esfomeados, enquanto abocanham tufos de pelo do animal, antes de a recompensa aparecer: o primeiro véu de carne (mas não descoberto até a cena terminar). Os lobos ilustram a natureza implacável e o destino inescapável - recordo o cavalo que tenta se soltar de onde está preso, e onde inevitavelmente morrerá -, embora pudessem nos ilustrar, espectadores: mordendo pedaços do filme até acharmos o véu de um prazer que jamais aparece e é sempre negado.
Eu sei que é aí que está a beleza de Os Malditos, mas que é um baita anticlímax, ah isso é!
Pequenas Coisas como Estas (Little Things like These)
Quando viajei para o Festival de Berlim nesse ano, o atraso no meu voo de Fortaleza fez com que eu perdesse a minha conexão e, consequentemente, este Pequenas Coisas como Estas, o retorno de Cillian Murphy às origens depois da atuação de Oppenheimer que lhe deu o Oscar de Melhor Ator. E, posso ser sincero? É uma atuação mais sólida do que aquela que lhe deu o maior prêmio da indústria hollywoodiana, ainda que seja uma atuação facilmente descartável por quem ignora a beleza que há no minimalismo.
Cillian interpreta Bill, um homem que cuida da própria vida (como sugere a cena no início, em que ignora a discussão de um casal), trabalha de segunda a sábado, antes do sol nascer até alto da noite, para sustentar a esposa e as cinco filhos como vendedor de carvão no condado irlandês onde habita. Ele é um homem que passaria invisível se não fossem as mãos sujas e manchadas de carvão, que diligentemente limpa quando chega em casa. Às vésperas do natal, após esbarrar no filho de um conhecido perambulando pela estrada, Bill começa a recordar de seu passado: a sua mãe o concebeu quando era menor de idade e fora do casamento, e, se não fosse um gesto de bondade, ela poderia ter sido enviada para o convento local, onde jovens mulheres em situações análogas passam por situações degradantes e humilhantes nas mãos da Madre, vivida por Emily Watson, a vencedora do prêmio de melhor atuação coadjuvante no Festival de Berlim.
Além de o encontro enviar Bill ao passado - ilustrados em flashbacks menos eficientes do que poderiam ser -, até colocando em movimento o ímpeto de agir, em vez de virar as costas, quando acidentalmente conhece a jovem Sarah (Zara Devlin) no convento do condado. Ela implora para que ele a leve dali, e o pedido coloca em movimento muitos traumas enterrados profundamente naquele homem e floresce o desejo de fazer algo, o que quer que seja. Que a narrativa seja ambientada no Natal, apenas reforça a nobreza milagrosa do gesto que ensaia realizar. Baseado no romance de Claire Keegan, no qual registra mais de 58 mil jovens mulheres enviadas para instituições religiosas similares e o destino delas e de seus filhos não nascidos, Pequenas Coisas como Estas é um drama sem pressa de acontecer.
A direção de Tim Mielants confia, integralmente, na atuação de Cillian Murphy, hoje, um dos atores mais Kuleshovianos que existe. O termo remete ao experimento de Lev Kuleshov, através do qual a montagem imprime a emoção em um rosto aparentemente inexpressivo com base na imagem subsequente. Cillian, com o olhar arregalado e bem expressivo e o rosto anguloso, permanece em silêncio e até alheio à realidade ao redor. O ator parece fazer pouco, mas a sensação é de que o tumulto interno está fervendo e prestes a entrar em ebulição, enquanto a direção é hábil em imprimir, no rosto do ator, o trauma de não agir. Cillian auxilia na composição do personagem: a respiração mais ofegante de quem passa o dia aspirando carvão, a boca aberta, e o peso do mundo nas costas ajudam a retratar a trajetória de um homem que não fez nada por muito tempo já. Está na hora de agir.
É um drama poderosamente quieto, mas cuja tensão é palpável: a cena em que Bill é convidado para beber chá com a Madre é apreensiva, graças à síntese dos elementos criativos. A fogueira que aquece e cuja simbologia parece-me óbvia em um ambiente religioso, o silêncio e a quebra deste por uma colher derrubada, a atuação dominante de Emily Watson e a repressão de Cillian Murphy, a decupagem da cena com ângulo alto e oblíquo que acentua o desconforto de Bill em diálogo com o ângulo frontal que reforça a autoridade da Madre, uou! Pequenas Coisas como Esta encontra um desfecho esperançoso - afinal, é natal -, mesmo que possamos imaginar que a bondade podem acabar 5, 10, 15 minutos depois dos créditos finais subirem.
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