Simón da Montanha (Simón de la Montaña)
Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica do Festival de Cannes deste ano, a coprodução latino-americana Simón da Montanha tem início com uma sequência mais surrealista do que necessariamente concreta. Simón (Lorenzo Ferro) conhece Pehuén (Pehuén Pedie), estudante de uma escola para pessoas com deficiência e necessidades especiais, em um lugar ermo, desacompanhado de responsáveis, na iminência de uma tempestade de areia. A cena dita o tom do restante da narrativa, proporcionando uma série de perguntas para as quais não teremos respostas objetivas, ou neste caso, o que esses jovens estavam fazendo onde estavam, por que desacompanhados e como foram resgatados?
O roteiro produzido por Federico Luis, o diretor, Tomás Murphy e Agustín Toscano me manteve ativo, refletindo e repensando na história, depois de quebrar a ‘verdade’ construída nas cenas iniciais. O que parecia ser uma obra interessada em explorar a vida de homens e mulheres, adultos ou adolescentes, com deficiência (intelectual, na maior parte dos casos) transforma-se numa obra de mistério e investigativa do ofício da atuação. Eu tentava responder mentalmente por que Simón finge ser a pessoa que não é, a partir das pontuais, mas sugestivas provas apresentadas, e me vi envolvido e absorvido à procura de explicações. Entretanto, a narrativa faz isso a despeito de seus personagens com deficiência, os quais são interpretados por atores não profissionais com deficiência. Parecido com Simón, que inicia um relacionamento com Colo (Kiara Supini), não compreendemos exatamente se o interesse do diretor é genuíno naquelas pessoas, proporcionando-nos um vislumbre em suas vidas ou se são apenas objetos de estudo e curiosidade momentânea.
Há até indícios de que haja mais do que voyeurismo, já que a direção distribui de uma maneira harmônica o voyeur e o objeto do voyeurismo: assistimos à Simón observando e aprendendo com o comportamento das pessoas as redor (com isso, o voyeur torna-se o objeto do nosso olhar), mas também assistimos ao que Simón curiosamente devora e se apropria. Ele os está estudando, compreendendo onde ou como se encaixar no meio e trabalha os maneirismos como faria um ‘ator do método’ (na acepção equivocada de quem acha que método é equivalente a se transformar inteiramente no outro, como o ator Daniel Day Lewis fazia, a título de exemplo). Essa decupagem de pura observação estreita a dimensão da imagem (a razão de aspecto) e reduz a profundidade de campo, com Simón ou quem observa ocupando dominantemente o centro. A subjetividade da abordagem é bem-vinda, apesar de incoerente quanto utiliza o recurso do aparelho de audição. Incoerente porque usado somente convenientemente: quando Simón resgata uma pessoa que estava se afogando ou no clímax, para criar um elemento de estilo.
Mesmo que ao término de Simón da Montanha tenhamos um diagnóstico parcialmente satisfatório das dores e frustrações individuais e familiares de Simón, e assim estamos capaz de iniciar a responder a mais perguntas sobre o personagem, eu senti um gosto amargo ao término. Além das questões morais do personagem - que não julgo, porque se referem a ele, um sujeito de uma obra de ficção -, há questões éticas relacionadas à direção referentes à marginalização dos personagens deficientes - objetos ao redor de que a história de Simón está sendo construída - ou mesmo à ideia de escapar, alienar-se do mundo onde está, em uma realidade onde as relações parecem ser mais simples.
De todo modo, é um filme estimulante em seu mistério de desvendar um indivíduo.
Apocalipse nos Trópicos
A fé e a espiritualidade, vivenciadas individual (no silêncio, no interior do quarto) ou coletivamente (dentro das igrejas, templos etc.), são atributos inegociáveis e tocantes. Assistir a uma pessoa comunicando-se (com ou sem aspas, dependente do leitor) com uma entidade divina e não materializada, qualquer que seja a crença, é uma liberdade que deve ser defendida. Mas, igual a toda forma de liberdade (ex. a de expressão), esta jamais pode se sobrepujar à liberdade dos outros que pensam diferentemente e, neste caso, creem diferentemente. É a base da democracia, mal interpretada como se fosse a vontade da maioria ou do politicamente mais forte, quando é um regime defensor das minorias vulneráveis do jugo opressivo do mais forte. Petra Costa tem isso em mente em Apocalipse nos Trópicos, que procura investigar a ascensão da fé evangélica no país e a ocupação de espaços relevantes no poder, e como isso pode provocar a opressão de liberdades em favor de uma teocracia.
Depois da indicação ao Oscar por Democracia em Vertigem, Petra mexe num caldeirão mais aquecido, com o mesmo estilo narrativo, embora com maior tato e sensibilidade. É compreensível a decisão. A crítica a um golpe de Estado pode ser contundente, pois só havia a opção de atacar a ruptura democrática naquele documentário, mas criticar a guinada religiosa no Brasil exige cautela para não pisar no pé e alienar as pessoas que apenas estão exercendo uma liberdade individual. Esta abertura faz com que a diretora eleja como peça-chave o pastor Silas Malafaia, o fiador da campanha de Jair Bolsonaro junto aos grupos evangélicos. Goste ou não de Silas, é uma escolha ousada, ou até uma faca de dois gumes para a pretensão da narrativa. Por ser um personagem sem travas e por vezes brutalmente franco, Silas é um personagem interessantemente contraditório.
A sua casa é um palácio nababesco, o carro que dirige é uma BMW e a forma com que se refere aos Estados Unidos como América simbólica do pensamento colonialista jamais superado na elite brasileira. Apesar disso, há um argumento com que concordo com Silas, o de que devemos preocupar-se com a vida material, e não somente esperar a vida espiritual. É a raiz da teologia da libertação - luta popular religiosa considerada comunista por restituir, aos pobres, a dignidade no lugar da resignação -, um conceito apropriado e deturpado pela teologia da prosperidade de pastores neopentecostais em favor da acumulação de riqueza em uma sistemática capitalista. A sensação na prática ao assistir a Apocalipse nos Trópicos é de perceber que a teocracia que a diretora critica é só mais uma consequência de uma Guerra Fria nunca encerrada, do capitalismo vs. o ‘fantasma’ do comunismo de Karl Marx. A cooptação das ‘sete colinas’, dentre as quais, a política é um plano de poder capitalista essencialmente, investigado pela diretora na sua gênese nos Estados Unidos da década de 50, até a sua importação ao Brasil e como se tornou meio de barganha e chantagem política. Silas é franco quanto a isso: afinal, ameaçar um Senador de que não terá o voto evangélico caso vote contra uma pauta do segmento religioso é, na realidade, o desejo de uma elite religiosa transplantada, via a pregação do pastor, a milhões de pessoas.
Com essa matéria prima, Petra realiza um documentário bastante sóbrio e poético. É dela um dos retratos mais contundentes da tragédia em Manaus durante a pandemia de Covid-19, quando as súplicas das pessoas e dos profissionais de saúde por falta de oxigênio transformam-se literalmente em orações. O poder da imagem está na síntese entre o que escutamos e as nuvens no céu, e na ironia trágica de que Deus não descerá dos céus para ajudar o que é a responsabilidade da política, do legislativo e da justiça brasileiros. A morte de centenas de milhares de pessoas não é uma providência divina apocalíptica, é apenas o que é: o retrato da negligência e descaso de quem deveria ter agido em favor da sociedade. Petra é irônica, já conhecemos, e a direção é eficiente em articular ideias a partir da montagem e do choque de ideias irreconciliáveis - a atitude de Jesus na Bíblia e o comportamento virulento de Jair Bolsonaro nos comícios, p. ex. - só que, em algum lugar, eu perdi o fio da meada do documentário.
De certa maneira, embora concorde com a Petra que o Estado brasileiro gradualmente ou de repente está se transformando em um Estado cristão, e não laico, pela cooptação dos espaços de poder e imposição de um pensamento religioso hegemônico, faltou-me uma construção argumentativa coerente. Eu consigo enxergar os eventos no tempo e a influência deles na política contemporânea, com as inserções de pessoas vestidas com a camisa da seleção brasileira orando na Avenida Paulista, a hesitação inicial e decisão posterior de Lula de buscar o voto evangélico e restabelecer o contato com o grupo, ou o exemplo - apenas um! - de uma mulher que não vota em Lula pela religião. Contudo, eu não sinto que as seis partes do documentário formem um todo coerente; ter só Silas Malafaia como o “garoto-propaganda” narrativo é uma faca de dois gumes justamente por isso, pois tão somente revela o comportamento de um (importante) ator político de tempos recentes quando há outros mais poderosos nos bastidores. Fora isso, a política é a ideologia e até o tecido conjuntivo, mas a essência é o poder político e econômico, e o documentário furta-se a essa análise.
A natureza mais poética e performática característica do estilo da diretora fazem dela uma estrela de seus documentários: a humanidade de Elena está na busca da irmã pela irmã, e a força de Democracia em Vertigem, em seu posicionamento político. Aqui, até por desconhecer e estar mergulhando no mundo do evangelismo (como afirma), Petra está menos presente. Nós a ouvimos, com a sua voz compassada ou com suas imagens poéticas, mas sentimos mesmo é o desejo latente de discutir temas urgente e atuais - a eleição de Lula, a invasão da Praça dos Três Poderes de 8 de janeiro etc. - e às vezes ao redor do tema da própria narrativa, a criação de um Estado teocrático. Até está lá, mas não com a força de seus trabalhos anteriores.
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