A história cinematográfica atribuiu a Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas (1967) a responsabilidade de iniciar o ciclo - prefiro, ao invés de movimento - denominado Nova Hollywood ou American New Age. Isso quer dizer que o início deste momento especial do cinema hollywoodiano, em que os chefes de estúdios temporariamente cederam o controle criativo aos diretores, são os lábios cheios de desejo de Bonnie, interpretada por Faye Dunaway.
A cena a seguir apresenta-nos de modo econômico à Bonnie, antes de ela conhecer Clyde, que saciará o seu desejo reprimido de muitas maneiras. Um desejo que era o desejo do público de cinema: não mais aquelas pessoas que cresceram com épicos e musicais da Hollywood Clássica, mas baby boomers transgressores e subversivos em um país em transformação profunda. O assassinato de John Fitzgerald Kennedy e a Guerra do Vietnã, o Movimento de Direitos Civis com o assassinato de seus líderes Martin Luther King, Malcolm X, Medgar Edvers, Fred Hampton etc., a Revolução Sexual e o Festival Woodstock, todos esses momentos sangravam no tecido social, e era impossível permanecer inerte.
As pessoas queriam livrar-se das grades, visíveis ou invisíveis, que as prendiam ao conformismo, e o cinema deixou de ser o meio de fuga da realidade, passou a ser o meio de expressão do incômodo, inconformismo e rebeldia da primeira geração de diretores formada em faculdades de cinema, de diretores cinéfilos que cresceram e devoraram o cinema europeu de Truffaut, Godard, Rossellini e Fellini, e japonês de Kurosawa, e que tiveram a oportunidade de contar as histórias que os interessavam com a mínima interferência dos cabeças dos estúdios, incapazes de se comunicar e dialogar com a geração sessentista.
Bonnie & Clyde não é o grito primordial dessa geração, pois a arte não é produzida em um vácuo, mas é o grito que ecoa e reverbera na história de foras da lei, mas que eram gente como a gente. Marginais que roubavam os bancos que roubavam as propriedades e vidas dos trabalhadores, marginais alçados à condição de ícones e mitos, por causa das páginas de jornais, que aumentavam e inventavam os seus feitos. Mas vamos à cena!
Bonnie & Clyde é transgressor desde o início: Bonnie caminha nua dentro do quarto, já transgredindo as regras já ineficazes do Código Hays, que determinava o que podia ou não podia ser exibido nas telas de cinema. Bonnie encara-se no espelho e talvez esteja frustrada com a imagem que vê: a da garçonete, morando na casa dos pais, entediada e cujos sonhos provavelmente seria incapaz de realizar caso não conhecesse o assaltante de bancos Clyde.
Ao deixar o espelho, uma outra transgressão, de ordem estilística: a descontinuidade típica dos jump cuts da Nouvelle Vague - o movimento cinematográfico que se inspirou na Hollywood e que inspirou a Nova Hollywood. A cena dá um salto à frente, ao invés de se desenvolver continuamente como na convenção da Hollywood clássica. O salto se repete quando Bonnie cai na cama e debate-se com as barras, o símbolo inequívoco da prisão metafórica em que está, a do tédio, a da vida ordinária e aquela em que está a maior parte da população estadunidense durante a depressão econômica. Antes de se levantar, a câmera realiza um primeiríssimo plano nos olhos dela que, junto com a sua boca no início, oferece a nós todas as informações que precisamos saber.
Essas informações são complementadas pela direção de arte. A gaiola no fundo repete o tema da prisão, enquanto as bonecas de porcelana representam a infantilização com que as Bonnies da sociedade estadunidense eram enxergadas.
Aí a cena corta para Clyde, surpreendido por Bonnie quando tentava furtar o carro de sua mãe. Ei, garoto, é como ela se dirige pejorativamente a ele, mas não há reprimenda, e sim, flerte, desejo insinuado na troca de olhar, na dinâmica meio príncipe e princesa às avessas, em que ela está no alto da torre (porém nua) e ele abaixo dela. A partir daí, a história começaria a ser escrita nos jornais, nas baladas musicais, que celebravam os bandidos Robin Hood, e nas imagens cinematográficas pela luz que mitificou o casal de criminosos e iniciou um dos capítulos mais empolgantes do cinema hollywoodiano.
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Muito bom!!