A doença é uma parte da vida, e o cinema que a explora tende a trilhar determinados caminhos, desde o melodrama que expressa as consequências individuais e coletivas usando como matéria prima a angústia ou o sofrimento, até a comédia dramática, em que tais matérias primas são adoçadas com sensibilidade ou banhadas com a luz solar da esperança. Câncer com Ascendente em Virgem dança através do espectro de possíveis maneiras com que a pessoa pode lidar com a doença, sem sentir a pressão de decidir a maneira correta para fazê-lo. Em um dia, Clara pode despertar fortalecida para lutar o tratamento do câncer de mama recém diagnosticado; em outro dia, essa determinação pode ter enfraquecido, e a dúvida se instaurar. E se eu não sobreviver?
Baseado em uma história real, Clara (Suzana Pires) é uma professora de matemática de ensino médio, que criou um canal descolado, no qual descomplica o aprendizado desta temida disciplina. Divorciada, mãe da pré-adolescente Alice (Nathália Costa) e filha de Leda (Marieta Severo), Clara recebe o diagnóstico da doença com a descrença de quem já deve tê-lo feito: a rotina de autocuidado, boa alimentação ou exercícios físicos não a protegeu da doença, apesar de ter lhe dado mais forças para enfrentá-la, com o auxílio da família e das amigas, dentre estas Dircinha (Fabiana Karla), que também enfrenta a doença, que acometeu o intestino, com a alegria de personagens cujo destino já somos capazes de deduzir, a partir de detalhes (não tão detalhes, assim) incorporados em sua personagem. Dircinha é quem ensina: “o oposto da morte não é a vida, é o nascimento, e a vida é o que existe entre os dois”, e convida a aproveitar o momento, o tal carpe diem.
Posso parecer meio coach, mas Câncer com Ascendente em Virgem não é, nem tampouco a diretora Rosane Svartman demonstra interesse em trilhar o caminho de quem busca um lado bom da doença, se é que há. A partir de roteiro escrito a seis mãos por Suzane, Martha Mendonça e Pedro Renato, o câncer revela-se como um obstáculo que impede Clara de realizar o que mais ama, dançar, e que a priva daquilo que a filha mais admira na mãe, o cabelo. Náuseas, dor, fraqueza e até a provável amputação do que é associado com o belo, o roteiro não se furta de mostrar a doença como ela é, e se existe lado bom, decorre da maneira com que as mulheres - em sua maioria - congregam-se ao redor de Clara.
Leda, a mãe bonachona, que, na falta de religião definida, abraça todas as possíveis, do catolicismo à umbanda, do hinduísmo ao budismo, é o alívio cômico, digamos assim, e ainda a personagem afetuosa, cuja presença é como o sol que ilumina o quadro. Vivida pela experiente Marieta Severo, Leda acarinha a filha, enquanto sua neta Alice precisa amadurecer literalmente para fortalecer-se. Nathália Costa merece os maiores elogios, pois faz com que Alice seja uma adolescente autêntica. Não aquele tipo de adolescente artificialmente cinematográfica, mas uma cujas demonstração de apatia, embaraço ou manipulação parecem genuínas como é quando briga com a mãe por não ter contado a respeito da doença ou quando senta no braço da cadeira para escutar a sua avó. É essa genealogia o exército com que Clara enfrenta a doença, e mesmo o ex-marido (Ângelo Paes Leme), ridicularizado pelo jeito imaturo com que tenta resgatar a juventude que não volta, ou a sua atual companheira (Júlia Konrad), integram tal exército do qual faz parte ainda a amiga Graça (Carla Cristina) e a médica (Maria Gal).
Esses personagens não asseguram o êxito do tratamento, embora reforcem o elemento estilístico de Svartman: a energia da sororidade, manifestada em planos conjuntos que não deixam Clara estar sozinha, como fica quando está gravando suas videoaulas, e na direção de fotografia de Dudu Miranda, que não é ingênuo para ignorar que a jornada de Clara é incerta, embora entenda que as luzes e cores tampouco podem atrapalhá-la. A estrutura do roteiro, em que a protagonista narra retrospectivamente uma parte dos eventos que enfrenta, é coerente com a atuação de Clara nas redes sociais… do mesmo modo que a personagem aponta a câmera para si, então a diretora aponta para Suzane que, se não quebra a quarta parede como um método, realiza em momentos oportunos.
Deixei para falar de Suzane por último porque a atriz é a evidência do êxito do projeto. Dividida entre o desejo de viver e o medo de morrer, entre a esperança e a vibração e a lamúria e melancolia, Suzane está em busca de um equilíbrio com o qual pode reaver o controle do corpo, furtado pela doença (ou pelo tratamento agressivo). Ela dança de lá para cá, entre a comédia dramática e o melodrama, mas com uma graça distinta de sua Clara, que tem dois pés esquerdos. Mesmo nas cenas bastante marcadas para provocar as nossas lágrimas, o que denuncia contra o projeto porque acaba subestimando nossa capacidade de sentir, Suzane estimula o desejo para que a sua luta contra o câncer seja vitoriosa. Já é, basta perceber o amor à vida demonstrado quando entra no mar ao lado das que ama.
Câncer com Ascendente em Virgem explora o câncer, em menor grau para tirar lágrimas, em maior grau para expor que não é uma sentença de morte. Nada é romantizado, e se é, não é o sofrimento de Clara, mas sim a força que encontra em quem está ao alcance de um abraço e quem está à distância nas redes sociais. Rosane sabe que acolhimento, humanidade e força de vontade não curam objetivamente o câncer, embora aumentem a chance de produzir um filme que pode ser instrumental para quem, em razão dessa doença, perdeu a vontade de dançar.