Diário do Festival de Berlim - Dia 1
Críticas de El Diablo Fuma, Keine Tier. So Wild, A Natureza das Coisas Invisíveis e mais...
Esta é a 75ª ed. do Festival de Berlim. É também a minha 3ª participação. Ao invés de ser o influenciador digital de anos anteriores, eu decidi retornar às origens e ser somente o crítico, com um tico de sensibilidade pessoal para quem é assinante da Newsletter.
A cobertura de um festival de cinema, ainda mais um igual a este, Cannes ou Veneza, é um esforço até certo ponto solitário. Muitos não viram ainda - talvez nem vejam - a maioria dos filmes que trarei aqui, então raramente recebo comentários. É onde entra a parte dois da cobertura, uma tentativa de trazer o conteúdo dos stories do instagram para cá.
Os filmes, primeiramente.
El Diablo Fuma (y guarda las cabezas de los cerillos quemados en la misma caja)
Eu sei que o título desta produção mexicana chamou a atenção de vocês como também fez comigo. Foi a minha primeira sessão (espero que a última) no Bluemax Theater, do Blue Man Group, um espaço apertado e improvisado onde acompanhei a história de 5 irmãos que moram com o pai e a avó depois de a mãe os ter abandonado. A razão para o ter feito permanece misteriosa, mas o pai sabe que tem que ir atrás delas e deixa os filhos para trás com a avó. Ela toma medidas para que o mundo externo não invada o mundo interior, e o serviço social descubra o descaso paternal. As crianças, de idades diferentes, agem… como crianças, mesmo que os mais velhos tenham o discernimento de saber que algo está acontecendo.
A temática de abandono familiar é o trabalho de estreia de Ernesto Martínez Bucio, e que é responsável pelo roteiro ao lado de Karen Plata. Seu maior mérito é a direção de crianças, que fabricam uma realidade meio O Senhor das Moscas, pautando suas vidas - até porque a avó, que deveria supervisioná-los, mergulha dentro de si própria, em um estado de automatismo e melancolia. Não há como culpá-la. Além da idade avançada, recursos escassos e questões emocionais, a Avó não tem a energia para acompanhá-los e atender às suas necessidades. Ela está tão presa quanto as crianças, e é consciente de que por prazo indeterminado (diferente delas).
A realidade que lhes resta é a casa e o quintal. A barricada obriga-lhes a se refugiar na fantasia - de onde advém o título do filme - ou se perder na ansiedade e frustração, em especial os mais velhos: Tomás, que acredita ter idade o bastante para acompanhar o pai e ser o homem da casa; Elsa, a mais velha, e aquela que suporta a responsabilidade doméstica. Há momentos em que as crianças deixam sua prisão fisicamente: o olhar e o tato do mundo externo, e até a fuga.
Por retratar a realidade através de olhos infantis, a narrativa alterna entre o humor, o lúdico e a brutalidade - Willy, o cachorro da família, é alimentado com ossos; não há o que comer mais. A cena que envolve uma galinha combina ambos os mundos, um quê um tanto irreverente, em termos formais pela maneira com que parece brincadeira de criança, mas trágico em função do que encena. Os vídeos de arquivo com a mãe ainda adicionam elementos ao mistério, pontuando uma felicidade que é fugidia, deixando o espectador especular por que os deixou para trás.
Kein Tier. So Wild.
Uma adaptação de Ricardo III, de William Shakespeare, na Alemanha contemporânea e em que os personagens são descendentes árabes? Ok, foi isto o que me convenceu. A ambição do personagem histórico, protagonista da obra de Shakespeare e já adaptado aos cinemas por Laurence Olivier, Ian McKellen e Al Pacino, no interessante ensaio e discussão Ricardo III - Um Ensaio (1996), é agora Rashida (Kenda Hmeidan), filha do clã York e que trama para por o irmão no poder. Entretanto, por ser mulher, é deixada de lado, e o misto de ambição e vingança acaba guiando as suas ações que provocam uma tragédia atrás da outra.
O diretor Burhan Qurbani talvez não seja o mais indicado para a adaptação feminista e contra o patriarcado, ainda mais quando o roteiro que co-escreveu com Enis Maci já coloca a sua ambição contra as demais mulheres da família, especialmente a cunhada Elisabeth (Verena Altenberger). Para Qurbani, o feminismo é simbolizado pela guerra e os estereótipos das men hater surgem como areia no deserto. Não funciona dentro do tema que parece ser desejado por Qurbani, que não discerne o movimento de quem o emprega como meio de instrumentalização.
Diferentemente, a adaptação de Shakespeare para os idiomas alemão e árabe tem uma sonoridade solene a meus ouvidos, uma gravidade ainda maior do que o idioma inglês, embora acompanhado de um tipo particular de tédio. Um que é causado pela maneira como a prosa é adaptada ao cinema: se na literatura, temos todo o tempo para devorar e absorver as palavras rebuscadas, no cinema este tempo foge pela mão. Não há tempo para decifrar os diálogos e as nuances. A adaptação ainda é paradoxal: pois, se a forma de expressão é anacrônica; o conteúdo, não. É adaptado ao contemporâneo, e somente posso perguntar por que não houve o mesmo com a forma. Até porque, se fosse para transformar as palavras derradeiras e célebres de Ricardo III (“Meu reino, meu reino por um cavalo”) na atrocidade cometida pelo roteiro, então ao menos que o texto fosse mantido.
A respeito de Shakespeare, a narrativa adota uma forma singular. Uma teatralização cinematográfica. Os cenários são muito bem produzidos, embora conservem um quê de artificialidade proposital e as formas de expressão são integradas com a dança e o monólogo - como se estivéssemos assistindo a uma peça teatral, e até o ponto de vista é às vezes o de quem está na plateia - , mas aí recursos tipicamente cinematográficos (ex. a câmera lenta, a montagem paralela via flashback ou contação) são integrados à encenação de Qurbani, e o que parecia ser uma adaptação fracassada se torna até mais interessante, nem que somente pensada parte por parte, e não no todo. Não desgostei.
A Natureza das Coisas Invisíveis
A morte a partir do ponto de vista infantil é o tema de A Natureza das Coisas Invisíveis, a estreia de Rafaela Camelo na direção de longas-metragens, e trabalhado de maneira sensível e delicada.
Glória acompanha a mãe e enfermeira Antônia nos plantões realizados no hospital. A presença da garota é tal que os pacientes já a tratam como neta, e Glória conhece cada história e segredo daquele espaço. Um dia, Glória conhece Sofia, que acompanhou sua bisavó Francisca ao mesmo hospital, após ter sofrido uma queda gravíssima. Sua mãe, Simone, chega apenas depois, e pode-se perceber o atrito geracional de mesmo gênero do entre Glória e Antônia. A ideia de duplos, ou de ciclos, parece-me atraente.
Rafaela Camelo apresenta a nós dois tipos de hospitais: aquele que cuida do corpo, ou espaço de tratamento paliativo, e o sítio, para onde os personagens deslocam-se, que é onde o espírito é cuidado. Esses hospitais são ilustrados de formas diferentes: um com profundidade de campo rasa e estreita; o outro, ampla e vasta, além do que só corpos deitados sobre macas esperando o anjo da morte. No sítio, a morte até ronda, mas é lá onde existe a vida (ex. os patos filhotes). A duplicidade Glória/Antônia, Sofia/Simone é só o ponto de partida de vivências gravitando medos comuns, e sonhos idem.
Mas não é somente de duplos a matéria-prima, é também de ciclos. Desde o princípio, em que a imagem caleidoscópica de uma galáxia dá azo a uma conversa sobre o tempo de vida dela, o ciclo da vida provoca a minha cabeça ligado à imagem de uma árvore da vida (?) que está no sítio e flerta com o firmamento. Aquela árvore esteve antes e estará por mais tempo após Glória, cujo tempo de ciclo estendeu-se depois da intervenção da medicina transplantar-lhe um coração.
É onde retorna a morte, ou “usar as coisas dos mortos”, que não se resume apenas a bens materiais, mas aquilo que é sinônimo de vida. A cicatriz no peito de Glória é o sinal de que morreu e retornou, e está visualmente associada à fissura na parede do hospital - onde pode haver cadáveres daqueles candangos que ajudaram a construir Brasília. Há muito a ser discutido em termos de vida e morte, duplos, ciclos… seja formalmente, já que o filme, subdividido em metades, morre em um formato para nascer noutro; e seja tematicamente, com a morte de uma identidade de gênero para o nascimento de outra.
A Natureza das Coisas Invisíveis é encantadoramente bem atuado, e a sua simplicidade é cativante na forma em como transforma a trajetória de mulheres de idades diferentes, no retrato não ilustrativo, mas simbólico do que é sororidade no qual as mulheres são como os galhos de uma mesma árvore. Filme lindinho!
Agora um pouco de Berlim…
Depois de aterrizar em Berlim, a escolha entre Uber ou Trem/Metrô. A viagem saindo do aeroporto, localizado noutro município (em termos brasileiros), ao centro da cidade dura em média 55 minutos a 1 hora.
Da janela, a imagem do inverno. O céu cinza, a paisagem coberta por neve. Se, no ano passado, Berlim tinha tido o inverno mais quente, este ano preparava uma surpresa: o inverno mais rigoroso. Nunca havia visto nevar durante o Festival de Berlim até então - o Pablo Villaça, que vem à Berlim há 10 anos, reforçou jamais ter visto nevar
O metrô berlinense é extremamente eficiente e prático depois de você aprender quais são as zonas A, B e C ou diferenciar os trens S dos U. O acesso ao vagão é livre, quero dizer, não há catracas. Contudo, internamente, há fiscais à paisana que podem multar passageiros que não tenham adquirido e validado tíquetes.
O shopping The Playce é localizado na Potsdamer Platz, onde estão o Berlinale Palast - o principal cinema do festival -, os cinemas Cinemaxx, onde acontecem algumas das cabines de imprensa, e bem perto do Arsenal, onde são realizadas as sessões do Fórum (uma mostra paralela à principal). O The Playce é onde costumo me refugiar do frio, e onde paro para comer nos intervalos dos filmes.
Alemães não têm cafés iguais a brasileiros, mas cafés são essenciais em festivais - em que dormir é uma possibilidade -, ainda mais um tão frio.
À noite, após retornar da sessão final, a neve sobre as árvores.