Diário do Festival de Berlim - Dia 7
Críticas de Yunan, Ancestral Visions of the Future, La Cache, The Good Sister, e mais...
Yunan
Munir, um homem árabe de meia idade, está realizando exames médicos respiratórios para verificar a causa de sua falta de ar. Os seus pulmões estão normais, explica o médico após o teste, recomendando ao personagem que reduza a ansiedade, o estresse. O que, provavelmente, Munir experiencia são ataques de pânico, engatilhados pela doença da mãe, o mal de Alzheimer, ou ainda associados à condição de imigrante na Alemanha. A beleza de Yunan está em assistir a esta trajetória até certo ponto inusual de homens entrando em contato com as suas dores emocionais. Um processo por tempos demais negligenciado por personagens (e pessoas) autossuficientes o bastante para achar que não precisam de ajuda.
No entanto, antes desse processo começar, Munir decide tirar a própria vida, e viaja a uma ilha remota para encontrar o ambiente adequado para levar a cabo o seu plano no filme escrito e dirigido por Ameer Fakher Eldin, cineasta nascido na Ucrânia, filho de pais sírios e radicado na Alemanha. Na ilha, Munir (Georges Khabbaz) é recebido pela anfitriã Valeska (Hanna Schygulla), que o abriga não na casa que serve de pensão, mas em uma a alguns quilômetros de distância. Valeska faz as vezes de uma mãe alternativa durante a tentativa de Munir em compreender a parábola que a mãe lhe deixou como a sua herança: uma acerca de um homem que não enxergava, não falava e não escutava e de uma mulher, pastores de ovelhas e pais de Munir.
A narrativa é processo, em vez de ação. Expressa-se no idílio do silêncio, um que está prestes a ser vulnerado pela chegada de tempestades: anunciada no quadro na pensão. A tempestade natural, que erguerá o nível do mar na ilha e submergirá parte dela, e a tempestade metafórica com a chegada de Karl (Tom Wlaschiha), filho de Valeska, que recentemente perdeu o pai e é um sujeito emocionalmente inacessível como é Munir. Até há conflitos, por ex. a luta livre que jogam em certo momento, mas na verdade há compreensão, uma que é alcançada a partir da serenidade contemplativa. Yunan é um filme lento, sim, que explora espaços fotogênicos e silêncios vastos para comunicar a importância de escutar o som da natureza (que é o som dos pensamentos, que é o som de dentro de cada um).
Parece um drama sobre a dificuldade de começar a meditar, pois estamos agitados e as perturbações externas provocam mais angústia e desolação do que a paz buscada. Esse sentimento é modificado com o avançar dos eventos. A ilha torna-se acolhedora justo com a chegada da tempestade, porque proporciona o meio de integração que falta aos personagens sob o mesmo teto. E é curioso perceber como a ilha é feita personagem: a linha de trem simbólica que avança até certo ponto mostra que os sons não alcançarão Munir, forçando-nos a recordar do apartamento de sua namorada, bem perto do metrô e cujo sons invadem a sua intimidade.
Alguns símbolos, apesar de óbvios, funcionam com a sua introdução delicada, por ex. a baleia trazida pelo mar e encalhada na ilha e o arco íris formado após a tempestade, e há uma doçura humana, que não precisa ser gritada a plenos pulmões, quando Karl convida Munir a sentar-se com eles: Você não precisa sentar-se sozinho, o equivalente a sugerir que ninguém precisa sofrer sozinho. Yunan é uma jornada entediante e até difícil para quem não está habituado a desacelerar e poder escutar os sons calados dentro de si, assim quem sabe compreendendo a mensagem críptica deixada pela mãe. Mas caso você esteja disposto a aceitar a diminuição de ritmo e respirar fundo, quem sabe lhe traga recompensa com sua beleza fotogênica e humana.
Ancestral Visions of the Future
O cineasta Lemohang Mosese colocou Lesoto no mapa cinematográfico com Isso Não é um Enterro, é uma Ressurreição para apenas retornar, seis anos depois, com este ensaio biográfico Ancestral Visions of the Future, que denomina uma ode ao cinema e um aceno à sua mãe. É uma narrativa de beleza incontestável embora às vezes impenetrável, seja em virtude da narração poética, que acredito dever funcionar melhor no roteiro do que em cena, seja em razão da fragmentariedade espacial e sobretudo temporal do registro feito. Não há figura central, senão a meditação sobre o lar, as razões para tê-lo deixado e, depois, para ter retornado, e qual o papel do cinema em resgatá-lo do destino que é reservado a tantos homens iguais a si.
Ainda assim, esteticamente, uou. O rosto do pai castigado pelo sol e pela lavoura, as crianças banhando no rio barrento, o garoto com o rosto e mãos cobertos de moscas, ou um homem com espinhos (facas) encravadas nas costas, este ensaio é atraente por conjugar estímulos aparentemente incompatíveis de uma maneira orgânica: a trilha sonora redimensiona a narrativa de um jeito extraterrestre e épico encontra-se com a narração intercorrente de Siphiwe Nzima, que em raras oportunidades cede espaço a outras vozes, como a da mulher no centro urbano, que clama: “Nós viemos da África, ou seja, de mulheres negras. Nós viemos de Deus e todos vieram de nós”.
Lemohang Mosese reflete o ontem, enquanto debate temas maiores humanos, por ex. a falta de pertencimento em uma Europa de estátuas ou o acolhimento em uma cidade violentíssima, cuja beleza está nas pessoas que o cercam. A diferenciação do subjetivo e poético se torna irrelevante, assim como do passado e presente, tudo colide no olhar do diretor ao mundo ao redor e na maneira com que pode transformá-lo para semear a sua arte… o tecido vermelho que flamula é o mesmo que representa o rio de sangue, e é dotado de uma beleza fruto da tragédia. Ao mencionar a chegada do cinema na cidade, a câmera desloca-se ao sol, à arte que ilumina e salva e à luz do projetor que torna esta e tantas outras histórias em materialidade.
Dá para perceber que é fácil perder-se nesse ensaio, somente para se reencontrar em imagens e em sensações, que revisitam trilhas de raciocínio e percepção. É o tempo de respirar as almas e expirar lápides, afirma o narrador, após narrar uma história da mãe e do filho, linchados pela população e queimados em pneus, como punição pelo crime - o furto, pelo pequenino, dentro de uma loja. Ancestral Visions of the Future é complexo, narrativamente elusivo e esteticamente ambicioso. É um filme que a avaliação deveria ser ignorada, em favor do que a arte cinematográfica pode proporcionar a quem deseja não apenas narrar histórias, mas investigar legados.
La Cache
Que delícia de filme é este La Cache, uma exploração bem humorada de um período marcante da história francesa, a revolução estudantil e a greve dos trabalhadores de maio de 1968, e a reação do governo de Charles de Gaulle, contados a partir do ponto de vista do garotinho interpretado por Ethan Chimienti. É também a história de uma família idiossincrática, como todas são no fim das contas, a bisavó imigrante russa, o avó médico e judeu sobrevivente da 2ª Guerra Mundial, a avó (que em público só quer ser chamada de tia), o tio revolucionário, o tio artista e os pais que estão nos protestos que acreditam ser capazes de mudar a história do país.
Com a direção de Lionel Baier, que escreve o roteiro ao lado de Catherine Charrier, a dramédia enfatiza a relação entre os membros dessa família e as suas ambições: o avô sonha, embora se repreenda por fazê-lo, em obter uma cadeira na associação nacional de medicina, recém vaga após a morte de um dos membros; o tio artista lamenta a má vendagem da sua arte; a avó (digo, tia) lida com a sua deficiência física, enquanto tenta estimular os trabalhadores a aderir ao movimento grevista. E todos eles gravitam em torno do protagonista, que acredita que sob o assoalho da casa está escondido um gato - “Se você acredita que há um gato, então deve haver”, estimula o avô e que é, mais tarde, acompanhado pela teoria do gato de Schrodinger.
De certa forma, La Cache é como aqueles filmes indies e espertinhos estadunidenses, com personagens e situações tão pitorescas quanto comer sanduíche de sardinha com chantilly ou quanto é uma pessoa calva ensinando o outro a fortalecer os cabelos. Mas é espertinho de um jeito francês de ser, não meramente condescendente, mas ingênuo até mesmo no discurso histórico e cinematográfico. Um que argumenta a fatualidade dos eventos narrados, ao mesmo tempo em que reconhece a impossibilidade de existir mentiras dentro da arte e linguística. Neste sentido, o instante em que a direção revela o fazer cinema na projeção traseira - aquele recurso em que os personagens ‘parecem’ dirigir, quando estão conduzindo à frente de uma projeção do cenário, é revelada logo quando o fundo transforma-se em azul ou vermelho. De novo, não é condescendência, é o retrato da inocência do olhar do protagonista para a sua família (trata-se de uma adaptação do livro de Christophe Boltanski).
Pois, ainda que não haja uma unidade íntegra por toda a narrativa, La Cache compensa com charme, doçura e os seus adoráveis personagens, especialmente Ethan Chimienti, que se torna o xodó do espectador, do mesmo jeito que é de cada membro da família - particularmente da bisavó, que o ensina a nadar crawl em cima da cama. Eu até admiro o descompromisso da narrativa com os fatos, em favor de uma reinterpretação lúdica e imaginativa. Mesmo que seja impossível imprimir olhar infantil à narrativa - exceto se o diretor fosse uma criança - narrativas como essa lembram como é gostoso brincar de se desprender das amarras caretas e quadradas do ordinário, em favor de um pouco de imaginação. É o que dá cor e vida ao momento histórico de maio de 1968, que, embora marcante pela efervescência em defesa dos direitos sociais, não obteve apoio político e não produziu os efeitos que merecia ter obtido.
E, ainda assim, mesmo que a história seja cinza, La Cache revela que pode ter cores se nós lembrarmos daquilo que, de fato, é importante. Nem que seja o gato, ou o político, escondido sob o assoalho da casa.
The Good Sister
Originalmente, Schwesterherz, achei este drama alemão meio covarde ao evitar mexer mais fundo no dilema moral apresentado à protagonista Rose (Marie Bloching): certo dia, ela é intimada a testemunhar na acusação de estupro movida contra o seu irmão, Samuel (Anton Weil). Como estamos tratando de um filme, é natural concluirmos que o irmão é culpado, pois caso contrário sequer haveria drama, então resta saber qual a escolha de Rose: se testemunhará contra o irmão ou se o protegerá a despeito do peso que manterá na sua consciência.
E o filme dirigido por Sarah Miro Fischer, estreante em longas-metragens, é melhor em explorar o estado emocional de Rose a partir da atuação exuberante de Bloching, do que dos eventos apresentados no roteiro, coescrito por Sarah junto com Agnes Maagaard Petersen. É muito melhor assistir à angústia de Rose, representada pela atriz quando modela nua em uma aula de pintura, do que os desdobramentos e os acontecimentos da história, que a levam à clínica estética onde a vítima trabalha - uma cena embaraçosa, como se a dolorosa depilação à cera fosse um castigo auto imposto -, ou ao encontro com um colega da aula, no qual o sexo violento se torna uma forma de castigar o sexo masculino.
O roteiro é o ponto fraco, não apenas nas situações construídas, mas até mesmo no que revela e no que evita. A noite em que o irmão estuprou (ou teria estuprado, caso prefira) a vítima é introduzida de um jeito inconclusivo, senão pela troca de olhares das mulheres, de tal modo que não seria absurdo imaginar que Rose não soubesse o que de fato ocorreu, o que anularia o dilema apresentado. Ao mesmo tempo, o filme evita discutir pontos cruciais, que são trabalhados de maneira brusca, por exemplo a justificativa padrão de “eu não sou um monstro”.
Por outro lado, admiro a direção, já que, após o conflito ser revelado, entendi por que senti incômodo quando Rose caminhava, sozinha, alienada do mundo ao redor com o seu fone de ouvido, e um homem aproximava-se por trás. Embora a cena seja inocente, uma vez que nada grave acontece, o efeito está em expor o risco a que a personagem e as mulheres estão expostas, pelo enquadramento claustrofóbico ou pela profundidade de campo rasa, que colocava o pedestre fora de foco. O depoimento na polícia é também competente, pela maneira com que a direção realiza a decupagem dos planos, com a posição incômoda de Rose dentro da imagem para reforçar a sua insegurança.
Só é lamentável que The Good Sister desperdice a sua atriz, que, insisto, faz milagres só com o olhar, e o dilema apresentado. Pois sim, a renúncia de quem se ama pelo que é o certo talvez seja um dos conflitos por excelência do cinema, e que seja apenas morno é um pecado dessa produção.
Meu Ranking da Competição Oficial:
1- Blue Moon (4.5/5)
2- O Último Azul (4/5)
3- Living the Land (4/5)
4- Reflet dans un Diamant Brut (4/5)
5- Se Eu Tivesse Pernas, Te Chutaria (3.5/5)
6- Yunan (3.5/5)
7- What Marielle Knows (3.5/5)
8- La Cache (3/5)
9- Ari (3/5)
10- Mother’s Baby (2.5/5)
11- Dreams (2/5)
12- Kotinental ‘25 (2/5)
13- Girls on Wire (2/5)
14- La Tour de Glace (2/5)
15- Hot Milk (1.5/5)
O microfone em uma coletiva de imprensa é a oportunidade de propor discussões bem ricas ou de provocar embaraço. Há perguntas tão ruins que fazem até eu repensar por que insisto em participar desses momentos breves - 30, 40 minutos no máximo em que deveria haver a permuta de conhecimento com os artistas. Longe de mim achar que as minhas perguntas são uma coca cola no deserto, mas ao menos repouso com a cabeça leve ciente de que preparo cada qual com afinco e carinho, como a que fiz ao diretor Richard Linklater e a Ethan Hawke na coletiva de Blue Moon.
Diferente de uma coletiva de imprensa, na qual você tem um minuto quando muito de interação com o artista, a entrevista é o melhor meio de você imprimir sua identidade nas perguntas que elabora. Entrevistei a diretora e roteirista Lúcia Murat, de Hora do Recreio, e aproveitei para explorar sua experiência e seu conhecimento sociopolítico.
Mother’s Baby foi o primeiro filme da competição que assisti juntamente com a equipe e o elenco, no Berlinale Palast, nessa edição do Festival. O ponto de vista interno é da tela de cinema com o tapete vermelho e trechos de edições passadas.
Por estar a 20 minutos de metrô da Potsdamer Platz, onde é o coração do festival, este ano não levei comigo o notebook para trabalhar na sala de imprensa. Aí a visita de um dos espaços reservados à crítica e aos jornalistas, este no interior do Berlinale Palasta, há ainda aquele no Hotel Hyatt, onde acontecem as coletivas de imprensa. Abaixo, um unicórnio cujo chifre foi arrancado - não sei quando exatamente - e em que você pode subir para bater foto por sua conta e risco.
Até amanhã!