Foi-se o tempo em que comentar “Isto é tão Black Mirror” era um atalho retórico para o leitor familiarizar-se com uma premissa futurista e tecnocêntrica, que discutia dramas e traumas do hoje, a partir de uma invenção do amanhã. A tal expressão, popularizada nas redes sociais no auge daquela série, foi utilizada quando escrevi sobre Swan Song, na qual Mahershala Ali interpreta um homem com uma doença em estágio terminal e que decide submeter-se à clonagem para que a família possa atravessar ‘suavemente’ o período de luto. É uma premissa idêntica a de Dual, disponível no catálogo da Netflix, e o fato de ambos os filmes funcionarem de maneiras diferentes, apesar de originarem de uma mesma ideia, advoga contrariamente aqueles que investem tempo e esforço na “história”, em favor de uma percepção holística de análise cinematográfica.
Sarah (Karen Gillan, a Nebula de Guardiões da Galáxia) é uma mulher depressiva, num relacionamento à distância com Peter (Beulah Koale), que parece incapaz de terminar um romance que já está morto, e num não relacionamento com a mãe (Maija Paunio), cujos telefonemas ignora. Sarah apenas existe. Até que, certo dia, acorda banhada por sangue, é diagnosticada com uma doença terminal incurável e encorajada a participar de um procedimento científico de clonagem que poderá ajudar os amigos e familiares a processar o luto. O papel de Sarah é treinar o clone para que aprenda a ser quem ela é. A narrativa realiza um salto no tempo: o clone de Sarah rebela-se contra a original, relaciona-se com Peter e restabelece o convívio com a mãe, e, para piorar (digo, não!), a original entra em remissão da doença terminal. E como a lei impede a coexistência, original e clone precisam duelar para saber quem permanecerá viva.
Escrito e dirigido por Riley Stearns, responsável pelo marcante A Arte da Autodefesa, Dual remete o público à obra do sueco Roy Andersson ou do grego Yorgos Lanthimos. As atuações inexpressivas, com a inflexão vocal monótona e a aversão a reproduzir, de um modo emocional, os sentimentos de Sarah salientam a depressão profunda na qual está a protagonista, enfatizada também pela forma com que ‘vive’ a vida. Ao descobrir que tem uma doença terminal, Karen Gillan internaliza a sua emoção e impede-nos de acessá-la, do mesmo jeito que aliena mãe e companheiro (com que conversa através de videochamada, colocando outra camada de alienação e distanciamento na relação). E a caracterização da personagem com figurinos desinteressantes, mesmo que tenham cor que sugira uma alegria anterior, e com a direção de arte claustrofóbica e desprovida de personalidade de onde habita reforçam o estado depressivo da personagem.
A depressão é apenas atenuada quando Sarah descobre ter entrado em remissão, mas não é esse o fato propriamente dito que a impulsiona a agir diferentemente, mas sim que a sua clone não aceitou o protocolo de desligamento e contestou judicialmente a decisão, do jeito que a lei autoriza: desafiando a original para um duelo em que quem vencer pode permanecer viva. Com um cinismo crítico, Riley Stears aprofunda-se em uma hipótese que poderia acontecer e, não satisfeito em meramente sugeri-lo, ainda desenvolve o potencial do desdobramento. É onde entra o preparador de Aaron Paul (de Breaking Bad), cujo papel é condicionar física e mentalmente Sarah ao duelo, ou mesmo um grupo de autoajuda formado por clones. Enquanto faz isto, o roteiro ainda satiriza o capitalismo em como observa um nicho qualquer na vida humana, e explora-o.
E aí, é saber o que é mais deprimente: o estado anterior de Sarah, possivelmente fruto da alienação e incomunicabilidade com aqueles em quem deveria confiar plenamente (mãe, namorado), ou o agora, pois para poder reaver, literalmente, o direito de viver, a pessoa precisa endividar-se ao ponto de ter uma fração para encher o tanque do carro. Dual parece até mesmo sugerir que Sarah sempre será infeliz, independentemente de quem assumirá a função social de Sarah. A fungibilidade entre os clones é a evidência de uma apatia e adoecimento da sociedade, que exige que o clone seja “treinado” pelo original quanto ao que gostar ou desgostar, em vez de amadurecer sua personalidade. E essa apatia tão bem retratada formalmente não torna o filme apático, pelo contrário, ironiza o fato de que Sarah (ou a sua clone) não precisariam de muito para ser felizes. Apenas foram condicionadas, tal como todos os demais personagens, a não serem.
Dual está disponível no catálogo da Netflix.