Crítica originalmente escrita na cobertura do Festival de Cannes 2024.
Se consigo evitar informações sobre os filmes que são lançados semanalmente, o que dizer de um Festival de Cinema em que às vezes somente sei quem é o diretor? O que soube antecipadamente acerca do recente trabalho de Jacques Audiard (do medíocre Dheepan: O Refúgio, e dos ótimos O Profeta e Ferrugem e Osso) era que sua protagonista seria vivida por Zoe Saldaña (de Avatar e Guardiões da Galáxia) e que a trama envolvia cartéis mexicanos – logo, podia inferir uma coisa ou outra, só. Entretanto, nada havia me preparado para o que aconteceria com 5 minutos de narrativa.
Zoe é Rita, uma advogada explorada pelo escritório de advocacia em que trabalha e que sabe ser culpado o cliente que defende, acusado de feminicídio, mas nada pode fazer a respeito, senão seu trabalho de assistente. Aí entra a quebra da expectativa: a frustração da advogada é revelada em um número musical que Zoe desempenha com uma desenvoltura vocal e dança admirável. Uma esperança surge quando o traficante mexicano Manitas (Karla Sofía Gascón) lhe oferece uma oportunidade: de ajudá-lo a encontrar uma clínica que realize a cirurgia de redesignação sexual para ser a pessoa que sempre nasceu para ser, e que ocultou dentro de si no reino de violência: Emilia Pérez.
Rita hesita, mas aceita, então o destino das personagens é conectado. Manitas morre e nasce Emilia Perez, deixando viúva a sua esposa Jessie (Selena Gomez, perdida em um papel que não lhe oferece muito) ao lado dos filhos, realocados na Suíça. Mais tarde, Emilia Pérez reencontra Rita para ajudá-la a reaproximar-se da família e, após, inicia um projeto de busca de pessoas desaparecidas pelos cartéis de narcotráfico no México.
O foco múltiplo é um dos equívocos do roteiro. A preparação da cirurgia de Manitas evolui na tentativa de reconexão com a família, após a busca dos cadáveres vítimas do narcotráfico e ainda a trama sobre o envolvimento de Jessie com Gustavo (Edgar Ramírez). Até gostaria de dizer que a narrativa “transforma-se”, mas a opção do termo é inapropriada, porque Manitas não se transforma em Emília, ele é. Além do mais, a ideia de que a bateria de cirurgias por que passa o personagem poderia modificar a personalidade de uma pessoa cruel em compassiva é otimista, para não dizer ingênua.
Além disso, por mais que goste do fato de a narrativa quebrar a expectativa sobre as histórias a respeito do narcotráfico com um musical, não houve nenhuma canção ou dança com que tenha me envolvido, senão pelo elemento surpresa. De fato, eu estava mais constrangido com a cantoria realizada no interior da clínica médica e no humor involuntário do momento karaokê de Selena Gomez. Este sentimento atravessou até o posicionamento de marca mais exagerado (ex. o cartão Visa Infinite) até sua resolução do conflito de Rita, menos pela previsibilidade, e mais pela artificialidade.
Por falar em Rita, Zoe Saldana está bem o bastante. Não a sua personagem, que detém uma função acessória a ponto de a remoção dela pouco ou nada impactar o arco da personagem-título. A despeito do relacionamento das mulheres ser núcleo da trama, a frustração de Rita é apenas atendida em um ato fortuito. Já Karla Sofía Gascón é dona de uma presença de cena que torna Manitas / Emília em uma personagem ameaçadora o bastante para manter em estado de insegurança e tensão o público.
Já a atuação de Selena Gomez é sabotada pela personagem ressentida e facilmente manipulável, cujo desenvolvimento é prejudicado pela ausência de tempo hábil para que as ações dela ressoem com credibilidade. Embora admita ter sido a exceção em Cannes – que tem recebido elogios da crítica presente -, Emília Pérez simplesmente não me pegou.
Muito, mas muito ruim! Não posso negar que já se mostrou nos 5 primeiros minutos, então em nenhum momento tive esperança de que ia melhorar.
Não tem uma música boa nesse filme, impressionante.