Enterre seus Mortos
A animação Memórias de um Caracol e o nacional Kasa Branca, no 8º dia da 48ª Mostra
Enterre seus Mortos
A nossa capacidade de atribuir verniz de normalidade à anormalidade está na base da minha percepção do terror apocalíptico Enterre seus Mortos, o novo trabalho de Marco Dutra (de Trabalhar Cansa e Sinfonia da Necrópole). Ambientado na cidadezinha fictícia de Abalurdes, em um tempo indeterminado, um futuro com aparência de ontem, que é uma forma eficiente de retratar o amanhã liderado por forças reacionárias, o taciturno e aparentemente insensível Edgar Wilson trabalha com recolhedor de animais mortos nas estradas. É uma profissão que leva ao pé da letra ao recusar assistência a vítima de acidente de trânsito, em favor do resgate desses animais para serem transformados em adubo (produtos, portanto). Ao lado de Tomás, um ex-padre excomungado, e envolvido romanticamente com a supervisora Nete, embora ‘romance’ seja uma palavra bastante forte para descrever a relação deles, Edgar assiste aos eventos apocalípticos diante dos olhos, a doença que acomete as crianças e a escalada de uma denominação religiosa.
Há muito, muito mesmo, disputando os holofotes em Enterre seus Mortos, e mesmo que os temas sejam convergentes, representando o adoecimento metafórico da sociedade à luz de uma epidemia (oi, Covid-19!), do medo do apocalipse e da ascensão religiosa, na prática há pouco ou nenhum diálogo entre esses temas. Admito ter ficado curioso com a primeira hora, em que foguetes espaciais levam pessoas para longe de uma Terra em chamas e sem esperança, ou em que ‘chuvas’ de pedras vulcânicas são corriqueiras e a explicação mais acessível para tantos animais mortos nas estradas. Há mistério, e este é bom para manter a mente afiada, trabalhando realizando conexões entre imagens ou informações apresentadas. Selton Mello é eficiente no horror, embora o personagem o deixe na mão: a inacessibilidade emocional de Edgar obviamente é a porta aberta para projeções e antecipações… quando Nete pergunta porque Edgar nunca sorri, sabemos que irá sorrir em um momento crucial, mas não qual que será esse momento. Edgar é menos interessante do que parece à primeira vista; as cicatrizes nas costas e a postura niilista contribuem para a aura de mistério tornada mais desinteressante com o passar do tempo, em direção ao desfecho (do personagem) desinteressante.
É mais problema do todo do que do personagem, talvez, uma vez que o roteiro abraça mais do que é capaz de articular. Ora, trata do fundamentalismo religioso e de como é influenciada e transformada a personagem de Nete (Marjorie Estiano, que é uma atriz incapaz de não doar a sua vida a qualquer projeto e trazer resultados positivos às suas personagens), ora é mais uma obra sobre a tentativa de escapatória daquele purgatório de céu alaranjado, no qual Tomás (Danilo Grangheia) revela ser um personagem-chave para compreensão da temática religiosa e espiritual. Ironicamente, ainda que afins, os pedaços de Enterre seus Mortos dialogam sem sucesso. A narrativa é mais eficaz como a obra atmosférica e desesperadora que é: a cidade desértica, os cadáveres de animais, o desabastecimento de carne (os animais estão contaminados), as condições desumanas ou a ausência de crianças - que, simbolicamente, representam a esperança no amanhã, mas que, no filme, são a fonte de ansiedade dos adultos. E Abalurdes conceitualmente fala mais sobre o protagonista do que a narrativa expositivamente revela: ora, por que um homem deixaria a cidade em direção àquele inferno? E talvez essa pergunta tenha a mesmíssima resposta de: por que pessoas abandonam a individualidade em favor de uma crença da moda?
A ideia de fuga está no coração da narrativa. A fuga da Terra para uma outra realidade ou planeta em um foguete, a fuga de crianças em direção a uma ilha isolada e a súplica de um pai (Carlos Francisco) ou o “esforço” para fugir do passado dentro do casulo. Há pano para discussão em Enterre seus Mortos. Enquanto escrevo o texto, posso perceber que posso ter gostado até mais do que de fato senti quando os créditos finais subiram (não é um sentimento inusual para quem trabalha na crítica), e creio que a revisitação em um momento futuro (não no contexto de festival, em que muito fervilha dentro de sua cabeça), pode ser bem-vinda. Mas, agora, sinto que a quantidade de estímulos, de boas ideias e fragmentos de boas ideias, resultam em um todo irregular, e talvez essa percepção estrutural não vá mudar. Uma estrutura atraente na primeira hora, porque o mistério é atrativo, e menos na segunda, que parece esforçar-se para encontrar um caminho.
Mas, é aquilo, é preferível um Enterre seus Mortos do que uma dúzia de filmes cômodos e esquecíveis lançados durante a semana. Ao menos Marco Dutra estimular o mistério e a curiosidade por sua ambição artística e temática de um Brasil de amanhã, mas que já está ocorrendo hoje — não com chuvas de rochas, ainda bem.
Memórias de um Caracol (Memoir of a Snail)
Não pareceram (ao menos para mim) que se passaram 15 anos desde que Adam Elliot lançou seu longa-metragem anterior, Mary & Max, por que foi premiado no Festival de Annecy, o mesmo prêmio recebido por esse Memórias de um Caracol. Mais equilibrado em empregar o humor para aliviar o efeito de uma narrativa intensamente dramática - com isso, desarma o impulso crítico de adjetivá-la de ‘trágica’ -, Adam recorda toda a história de vida de Grace Pudel, que tem início depois da morte de uma amiga, Pinky. Nascida com o lábio leporino e prematura, Grace não teve uma infância fácil: sua mãe morreu no parto, seu pai alcoólatra morreu quando ela e seu irmão gêmeo ainda eram crianças e a família foi separada porque nenhum lar adotivo quis adotá-los juntos.
Como resultado, Grace retraiu-se ainda mais, vivendo só através das cartas recebidas do irmão e do foco obsessivo em caracóis. A acumulação de bens materiais e traumas é a concha que Grace carrega enquanto deixa a pré-adolescência à idade adulta - mas na qual não encontra a felicidade, apenas a ilusão desta. A vida do irmão, Gilbert, não é melhor. Adotado por uma família rural, fundamentalista, cruel e hipócrita, Gilbert é explorado como uma parte da linha de produção e como membro da ‘igreja’ familiar e ainda tem a individualidade ameaçada por dogmas que não são seus. Similar a Mary & Max, a vida dos personagens de Memórias de um Caracol é tormentosa, e a animação de stop motion reforça a atmosfera depressiva e traumática da narrativa.
A animação massacra-nos emocionalmente, mas a narração estruturada num flashback integral oferece uma alternativa de distanciamento emocional e temporal. É dito que o tempo cura feridas, mas deixa cicatrizes. Contudo, a relação com o trauma é diferente daquela com a violência ou o abuso no tempo presente. Assistir à Grace relembrando o passado não tira o peso emocional, mas a ansiedade, em uma lógica de sobrevivente e reconciliação com a memória. Apesar de tudo, a protagonista resistiu e persistiu. A experiência, cujo trauma é acentuado pelo estilo de animação e pelos sulcos e marcas no rosto dos bonecos animados, levou Grace de um local para o outro. Isso conta algo em um filme com uma quantidade desproporcional de más notícias em comparação a boas.
A ‘filosofia’ de um caracol (se é que há uma) salva e aprisiona Grace. É até irônico que, se caracóis só andam para frente, Grace deva retornar ao passado para que encontre a chave do presente. É uma contradição interna que o filme não pretende resolver, mas mantém em aberto. Caracóis não são os professores da vida. Aprender isso, ainda que de uma forma tardia, faz com que Memórias de um Caracol seja capaz de proporcionar o sorriso no lugar das lágrimas deixadas por Mary & Max.
Kasa Branca
Uma imagem de Kasa Branca que não sai da cabeça é a do trilho do trem ondulando-se sobre o terreno onde está construído, enquanto o vagão atravessa, de uma ponta à outra, a imagem. Além de simbolizar a importância de o indivíduo ser flexível a fim de que suporte a carga pesada sobre as suas costas, a imagem está relacionada à distração de Almerinda (Teca Pereira), a avó do protagonista Dé (Big Jaum), em estágio avançado de mal de Alzheimer. Dé é como o trilho que aguenta, com a ajuda de amigos, Martins e Adrianin, a responsabilidade herdada de quem o abandonou: cuidar da avó. Se seus amigos aproveitam a idade para divertirem-se e namorar, Dé precisa ser rochedo - a imagem final é sugestiva - para proporcionar, do jeito que pode, um fim digno à avó.
Premiado no Festival do Rio deste ano, Kasa Branca é um olhar e uma proposta de filme de favela - detesto tal termo reducionista e pejorativo, mas utilizo a título ilustrativo -, que ignora as mazelas cinematograficamente relacionadas às comunidades situadas nos morros cariocas - como o crime organizado, tráfico de drogas e a desumanização -, e restitui a dignidade a esse espaço a partir do idioma do afeto entre Dé e a avó, dele e os amigos, ou destes dentro de suas subtramas específicas. Embora o trio cometa contravenções menores, tipo invadir um parque de diversões ou furtar medicamentos, e que o roteiro de Luciano Vidigal traga violências, tais como as abordagens policial e miliciana em determinado momento, a narrativa reflete a ideia de comunidade no sentido literal da palavra: uns ajudando os outros.
Adotando o mesmo caminho de Marte Um ou O Dia que te Conheci, não há vírgula que seja que reduza os personagens negros, protagonistas ou coadjuvantes, a estereótipos. Além do mais, ainda que a doença de Almerinda estruture como uma espinha dorsal a narrativa, não a sufoca, porque há o espaço para que os sonhos ou desejos de Dé - cujo orgulho, misturado com receio, impedem-no de contatar o pai que o abandonou (Babu Santana) -, Adrianin e Martins, e seus romances. Kasa Branca “normaliza” as vivências que o cinema habitualmente “desnormaliza”, ou ao menos limita, quando transforma o mesmo cenário e os mesmos corpos em matérias primas de olhares que perpetuam um conhecimento restrito sobre aquela realidade. Pois, apesar de considerar incontestável a qualidade Cidade de Deus, é igualmente inquestionável que esse filme - e tantos mais que inspirou - perpetuaram como regra uma exceção.
A regra deveriam ser filmes como Kasa Branca, uma narrativa de linguagem acessível o bastante para ser a porta atrás da qual abandonamos os preconceitos para aproveitar a história de um neto que ama tanto a avó que sacrifica a própria juventude para cuidar dela. A direção valoriza a voz, a atitude e o corpo dos seus jovens intérpretes em ações e reações que, até quando são mais simplistas, dado os problemas complexos diante de Dé, encontra uma expressão realista mesmo quando bebe da fonte de conto de fadas e de circunstâncias fortuitas. Em meio a isso tudo, a presença ausência de Teca Pereira, cuja atuação vitrifica o olhar de Almerinda para que, pontualmente, devolva-lhe a vida e a consciência. Almerinda não pode agradecer verbalmente a dedicação de Dé, senão através de um olhar que o cacifa a ser um tipo de exemplo e ‘herói’ não só do filme, da comunidade, mas também da sociedade. A esperança é de que Kasa Branca seja mais uma entrada, e não uma exceção, de um movimento de retrato positivo de identidades marginalizadas, que estimule tantas obras quanto Cidade de Deus fez anteriormente.
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