O Found footage, ou fita encontrada, não é um gênero ou subgênero cinematográfico, apesar de ser assim definido por leigos e mesmo até especialistas, mas uma forma de contar histórias popularizada por A Bruxa de Blair (1999), e que resulta em adicionar a textura da realidade à ficção, dando a histórias já exploradas anteriormente o registro de um material filmado previamente, descoberto e editado pelos diretores. Podem ser fitas VHS, DVDs, registros de câmera super 8mm ou celular as interfaces que criam as narrativas frequentemente, mas não necessariamente de horror, inspiradas na estética do mockumentary (ou pseudodocumentário). Eu até acreditava que esse ciclo, que teve um boom em meados da década passada com Atividade Paranormal (2007), [Rec] (2007) e Cloverfield (2008), já tinha arrefecido, porém eis que surge uma produção independente australiana, Entrevista com o Demônio, e que se tornou uma sensação na cinefilia.
Escrito e dirigido por Cameron e Colin Cairnes, Entrevista com o Demônio tem início com um registro da década de 70 (a Guerra do Vietnã, a Família de Charles Mason, o Filho de Sam etc.), até deslocar o seu foco à história do talk show apresentado por Jack Delroy (David Dastmalchian), Night Owls, que disputou a atenção do público notívago até sofrer uma queda de audiência significativa. A explicação pode estar relacionada à morte de Madeleine (Georgina Haig), esposa de Jack. Um fato com que o capitalismo, mais preocupado com pontos de audiência, está indiferente, levando Jack a apresentar na corda bomba o especial de Halloween de 1977, no qual prometeu exibir, ao vivo nas televisões, uma possessão demoníaca.
De forma simplória, a narrativa consiste na exibição do hipotético programa televisivo com os eventuais cortes aos bastidores, no qual é exposta a preocupação de Jack com a audiência e de Gus (Rhys Auteri), seu assistente de palco, com o oculto e sobrenatural. Resumida assim a narrativa, mal me aproximo de ilustrar a hábil construção de tensão feita pela dupla de diretores. É o tipo de horror que ignora os subtextos existentes nas críticas ao sensacionalismo e até onde Jack está disposto a vender “sua alma” em favor do show business e da audiência, por uma relação direta e imediata do espectador com o programa televisivo, com a magia do audiovisual e o ilusionismo da imagem que nos atrai e fascina. O melhor de um horror igual a este é estar tão envolvido com a imagem e a estrutura em torno da qual se contorce (igual faz o Sr. Wriggles), que sequer parece termos oportunidade para pensar nas implicações da imagem de um modo consciente.
Isso é notado imediatamente na direção de fotografia de Matthew Temple, cuja paleta de cores desbotada remete à das televisões de tubo populares nos anos 70, e no preto e branco com que a narrativa explora os bastidores, e ainda na direção de arte de Otello Stolfo, que cria o cenário onde acontece a maior parte da narrativa com uma ênfase no camp popularmente atribuído ao horror satanista daquele período. A relação inicia na imagem e é aprofundada na estrutura do programa: a princípio, um divertimento para lá de inocente, com um médium aparentemente canastrão (gostei do excesso de Fayssal Bazzi) e um especialista em desmascarar fraudadores com a mesma autoridade de um Dr. Loomis (que também tem uma atuação bacana de Ian Bliss); contudo, à medida que o programa avança em direção a seu clímax, com a parapsicóloga June (Laura Gordon) e Lily (Ingrid Torelli), uma criança de 13 anos, resgatada de uma seita satanista, o que era lúdico torna-se aterrorizante.
Não é um medo, mas aquela sensação de gostoso atrevimento de assistir ao que éramos proibidos de assistir na calada da noite ou de passar a tarde assistindo ao Cine Trash (é da sua época?) da Bandeirantes, no lugar de terminar os deveres de casa da escola. O sabor da curiosidade, de espiar o que não deveríamos, de abrir mais a fresta da porta, é análogo ao desejo que move Jack. A qualquer momento, Jack poderia puxar da tomada o programa, mas o desejo de ir além, a cada intervalo comercial, e não escutar a voz da razão (de Gus), é o caminho trilhado pela narrativa até as convenções do found footage operaram a conclusão prevista (nenhuma fita perdida é encontrada em vão, certo?).
É delicioso acompanhar o programa, de bloco em bloco, a desenvoltura meio hesitante e meio intrigada de David Dastmalchian e o modo como a narrativa abraça a essência do cinema B nos mesmos efeitos especiais que seriam utilizados no período, enquanto permanecemos literalmente hipnotizados pelo desenvolvimento controlado da direção e engajado em como a narrativa se desenrolará. E, embora tenha ressalvas em relação aos 10 minutos finais, estas apenas enfraquecem, não inutilizam, o meu envolvimento até então. Além do mais, há algo a ser discutido quando a câmera deixa o conforto do espaço ilusório do talk show e é deslocada para trás das cortinas. Pois, mesmo que isto implique na quebra da estrutura formal construída com esmero até então, serve como uma constatação da natureza ficcional do formato e da liberdade antinatural que seus criadores têm sobre a obra. Além de expor Jack e colocá-lo à mercê do que plantou.
Entrevista com o Demônio está em exibição nos cinemas brasileiros.