Depois de ser exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes e no CPH:DOX, festival de documentários de Copenhague, Eros será apropriadamente lançado amanhã, dia 12, o dia dos namorados. A escolha da data não é apenas uma jogada de marketing. Como o resultado de uma experiência pessoal e íntima, confidenciada no prólogo do projeto, a diretora e produtora inglesa radicada no Brasil, Rachel Ellis Daisy, buscou entender e desestigmatizar a principal instituição do sexo, o motel, a partir de dez depoimentos gravados por cônjuges, companheiros, namorados, amantes ou profissionais do sexo, frequentadores do motel, através de seus dispositivos móveis, respeitadas instruções dadas pela diretora. O resultado revela uma parcela da demografia do desejo, sexo ou formas de intimidade, além dos relacionamentos cis-heteronormativos monogâmicos, e é também uma oportunidade de discussão da arte cinematográfica.
Cada registro é mais do que o vídeo íntimo, sexual, emocional e até espiritual, de seus personagens, é também a oportunidade para assistirmos a manifestações de prazer ou apenas o momento em que se alimentam e conversam antes ou após o sexo. Eros é tão revelador quanto é aparentemente transgressor - se você for do time que se incomoda em assistir a adultos transando consensualmente. A propósito, a partir dos vídeos, nos podemos perceber que o ato sexual é só parte da experiência de motel, que já inicia ao entrar no estabelecimento iluminado com luzes néon, escolher o quarto - assistido por uma tela sensível ao toque, e haverá muitos toques no filme!, ou por um atendente -, entrar na garagem reservada e desbravar o quarto, que pode ser convencional, ou pode ser voltado a atender a tipos específico de fetiche (BDSM, voyeurismo e exibicionismo etc.), e aproveitar um momento de intimidade plena para ser honesto consigo mesmo.
Uma honestidade ilustrada no debate desses personagens acerca da conciliação entre a religiosidade, a cristã evangélica particularmente, e o sexo no motel, as experiências passadas afetivas e sexuais e relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual - em certo momento, um personagem afirma que ‘transar deitado’ é um privilégio que a comunidade LGBTQIA+ às vezes não possui. E, claro, uma honestidade manifestada e vivenciada em fetiches ou no role playing, quando os personagens interpretam papéis. Mais do que apenas despir os corpos dos personagens, em sua maioria não padrão, os registros audiovisuais também despem as suas almas, revelando as suas convicções em relação ao tema narrativo.
Só que ironicamente, diferente de vídeos íntimos que normalmente são gravados para serem assistidos somente por aqueles envolvidos, a publicidade dos registros em Eros enquanto descortina individualidades também pode sugerir a criação de personagens. Mesmo que Rachel Ellis Daisy não estivesse presente durantes as filmagens, um gesto de respeito à intimidade e individualidade de cada participante, a sensação é de que os personagens, intencional ou inconscientemente, interpretam papéis diante da diretora - que lá não está -, o que leva o espectador a refletir sobre como a câmera cria avatares naturalmente. Por falar em intenção ou inconsciente, não consigo resistir a enxergar o documentário como uma resposta ao isolamento da pandemia de Covid-19, que criou ‘quartos de motel’ dentro de nossos lares, embora esses quartos tenham servido mais para revelar os medos, temores e pânicos que experimentamos. Pois quartos de motel proporcionam a chance de o nosso ‘eu’ se revelar como é, sem as amarras construídas a partir dos olhares da sociedade. Até namorei essa ideia de Rachel ter respondido à pandemia com um documentário sobre contato íntimo… é somente a decisão natural, pensei.
Mas Eros é também um filme sobre fazer cinema. Cada ator social é o diretor de seu segmento, cada um decide o que e como filmar, a mise-en-scène, tudo fotografado a partir das câmeras digitais dos telefones celulares que tem suas resoluções próprias, que ajudam até a especular a classe social de cada um a partir da imagem registrada. Essa decisão vai ao encontro da narrativa: do mesmo modo que diferentes modos de amar, de sentir, de desejar são expostos, também modos de cinema estão costurados, mas não entrelaçados, com abordagem, tempo, espaço particulares. No fim, cada um não despe só roupas, fetiches ou reflexões, despe ainda a forma como se enxergam, a partir de uma sensibilidade cinematográfica que é reflexo e transparência. De motel em motel, de história em história, Rachel começou a ilustração de algumas partes de um atlas geográfico do prazer, portanto, da brasilidade.
Eros estreia nos cinemas brasileiros quinta-feira, 12 de junho.
Assista à entrevista com a diretora
Assisti ao filme na pré-estreia no Cine Brasília. Durante a exibição, em vez de me sentir um voyeur, fui tomado por uma sensação de familiaridade. Eu não estava olhando pela fechadura, e sim para um espelho. Sentia-me totalmente à vontade, como os personagens. Ao final, ficou a sensação de que a sexualidade — e tudo o que a cerca — é algo muito compartilhado entre nós. Talvez não percebamos isso justamente porque falamos pouco sobre o assunto.