Recém-lançado no catálogo da Netflix, Farol da Ilusão inicia com uma imagem forte e evocativa: Jana, a jovem protagonista interpretada por Riman Al Rafeea, encara o espectador, inabalável e sem piscar, mesmo quando uma mosca pousa em seu rosto. O motivo para tal é um vestido azul que flutua no vento, caí em uma corrente do rio, mas Jana não consegue alcançá-lo. O que representa? Somente compreenderemos à frente. Logo depois, a ação corta para outra personagem que encara o espectador, com a mediação de um binóculo: é Yasmine, a mãe de Jana interpretada pela atriz e diretora Nadine Labaki (de Cafarnaum), que monitora a chegada da embarcação que sinalizaria a troca de guarda no farol onde o marido, Nabil, trabalha.
Interpretado por Ziad Bakri, Nadil é um faroleiro introspectivo, como aprendemos a supor tratar-se desses personagens, e um pai idem, relegando à Yasmine a ânsia do retorno à terra firma. Isso aliena, de certo modo, até mesmo Adam, o filho mais velho da família interpretado por Zain Al Rafeea (o protagonista de Cafarnaum), e que recebe com estranhamento o convite da família para almoçarem juntos. Há verdades não ditas, que interferem na rotina diária, e logo o realismo inaugural das circunstâncias narrativas começa a erodir no mesmo ritmo que a pequena ilha ao redor do farol também erode com o avançar da água.
Farol da Ilusão pode ser frustrante, para uns espectadores, por negociar o realismo em favor da fantasia, um movimento contrário daquele realizado por Cafarnaum. O próprio farol mais parece ser a fabulação de uma garota rabiscando no seu livro de desenhos – o que realiza, bem ou mal, na estrutura externa – do que a construção que serve para orientar os navios perdidos nas águas vizinhas. Se, como símbolo, o farol é uma metáfora óbvia, como personagem não. A estrutura é lar daquela família e o refúgio físico e emocional de Jana, um espaço protetor das águas ameaçadoras, embora não se saiba por quanto tempo.
Enquanto o realismo formal cede espaço à fantasia e elaboração infantil do trauma – Farol da Ilusão é dedicado a milhões de pessoas, crianças sobretudo, deslocadas em razão de conflitos e guerras e obrigadas a encontrar abrigo dentro de si mesmas –, o realismo material, o que de fato aconteceu ou está acontecendo, é o mar que se infiltra por entre os poros da estrutura do farol e inunda a fantasia com que Jana protege-se. Em algum momento, Jana e o espectador precisão reconhecer e lidar com o trauma. Conceitualmente, a proposta de Farol da Ilusão é admirável, mesmo que, na prática, a coprodução União Europeia e Líbano dirigida por Matty Brown não saiba explorar a sua ambiguidade.
Até acredito que a leitura retrospectiva enriqueça o filme: a tentativa de Yasmine em manter a família unida, a despeito do abandono em local ermo, da ansiedade e do desespero acentuados; o isolamento de Adam dentro do próprio mundo; e até o momento de leveza em que Nadil e Adam unem-se para pescar o alimento – cada vez mais escasso na mesa de refeições da família. Contudo, penso que Matty Brown imprima à narrativa uma urgência rítmica e imagética que não é compatível com a imaginação de Jana. Há sempre uma opulência sufocante da imagem, disfarçada de beleza fotogênica: por exemplo a câmera à altura da relva, em ângulo baixo, enquanto Yasmine corre e a luz solar penetra na lente. É uma sequência bela, mas cuja beleza é só estética, não emoção ou espírito.
Dá até para afirmar que a fotogenia da imagem é a razão da ineficácia da direção de fotografia, consequentemente da encenação da direção. Além disso, o roteiro sente uma necessidade de se explicar mais do que deveria. Para que um flashback de tal duração, quando uma imagem em um porta-retrato já seria o bastante para que o espectador pudesse responder a questão plantada no centro da narrativa? Eu sei a resposta. Farol da Ilusão precisa dar satisfação da questão política e humanitária presente em seu cerne – que fisgou Nadine Labaki à produção, mesmo que apenas à frente das câmeras, e não também atrás dela –, então a raiz do problema deve ser desterrada e iluminada.
O que era um drama individual de uma garota, que se sente responsável o bastante pelo que aconteceu a ponto de precisar encontrar escapismo na fantasia, torna-se instrumento para a discussão de uma temática social e humanitária urgente, sem a menor dúvida, mas que acaba reduzindo o indivíduo ao instrumentalizá-lo. Acredito que a conscientização do espectador seja bem mais eficaz quando sutil e sensível – como havia sendo, até então – do que quando vira só uma mensagem, envolta em uma reviravolta. Faróis, que deveriam ser guias, às vezes cegam aqueles que ousam encarar diretamente para a sua luz incandescente. Isso é o que impede o bom, mas frágil Farol da Ilusão de estar à altura da tarefa que decide assumir.