A adaptação de Feios, o primeiro livro de uma série escrita por Scott Westerfeld, está ao menos uma década atrasada, depois de Jogos Vorazes (2012), Divergente (2014), Maze Runner (2014), O Doador de Memórias (2014), A 5ª Onda (2016) etc. esgotaram o estoque de adaptações de distopias jovem adulto. É oportuno estudar este ciclo de filmes, que explora o sentimento alheio e finalmente revolucionário da geração contemporânea, em uma realidade distópica, consequência de ações e omissões das gerações passadas. Independente do valor narrativo e histórico dessas produções, Feios não embarcou na estação certa e, lançado na semana passada na Netflix, é somente mais uma produção para entulhar o catálogo do streaming.
O pano de fundo não é muito diferente das distopias jovem adulto: quando o planeta Terra foi arruinado por guerras e crise energética - a ganância do capitalismo que é a manchete dos jornais e das redes sociais -, aqueles que detêm o poder resolveram que os adolescentes, ao completarem 16 anos, atravessariam uma cirurgia estética e ainda de personalidade que os tornaria a melhor versão deles próprios. A vida se resumiria à alienação de festas, que óbvio está ao serviço de esconder uma verdade inconveniente. É dentro desse cenário em que Tally (Joey King) descobrirá que o procedimento não é o que sonhava que seria e que os rebeldes, autointitulados Fumaça, não são bárbaros e desumanos como pregava serem a Dr. Cable (Laverne Cox).
Na essência de Feios, uma ideologia fascista na qual, ao serem a melhor versão de si mesmos, os adolescentes também sofrem uma lavagem cerebral que os retira o juízo crítico indispensável para decidirem quem são dentro de uma democracia. Ser bonito bastaria, e ainda que isto carregue uma crítica dentro da sociedade de aparências das redes sociais que pareça emprestar ao filme a relevância que procura, não é o tema da distopia. O bonito é só um sinônimo de alienado, alguém narcisista e absorto dentro do próprio individualismo, que ignora o coletivo. Ser bonito é ser fascista dentro da lógica narrativa, e entregar de mão beijada o direito de determinar o destino de tal sociedade de iguais (onde iguais não há).
A premissa é boa (costuma ser na maioria das vezes), mas esconde um roteiro frágil e rotineiro que mal encontra uma justificativa para se estender além dos 90 minutos de duração. É o tempo para que Tally desencante-se do procedimento, aceite a proposta da Dr. Cable de se infiltrar na Fumaça e após tente derrubar o regime, com o exército de uma dúzia de gatos pingados. Se Jogos Vorazes ou Divergente ainda tinham uma ideia de escala bem estabelecida, Feios parece existir dentro de uma universo em que há um milhar de pessoas e só. É uma escala tão minúscula que até questiona a legitimidade e validade do contexto que o espectador explora nos planos abertos, de arranha-céus em um cenário néon e de fogos de artifício, e em que o elemento solo produtivo é uma flor capaz de abastecer energeticamente as demandas da sociedade.
Contudo, ainda prefiro os planos abertos. Ao menos revelam alguma criatividade, nem que apenas da equipe de direção de arte associada à supervisão de efeitos visuais, pois, no restante do tempo o diretor McG (de As Panteras), a encenação é monumentalmente pobre e que revela o custo da produção. Planos e contra planos dentro do casulo cinza e impessoal, que Tally chama de lar e onde assiste simulações da sua melhor versão, e do lado de fora, quando Tally alia-se aos rebeldes, naquela dinâmica corriqueira de ser uma espiã (não por maldade, mas por ingenuidade) e depois ter que provar o seu valor em um gesto de altruísmo. Tudo isso dirigido com o mínimo de competência, incapaz de elaborar emoção ou tensão, ou até mesmo de explorar as possibilidades de assistir a skates voadores cruzando o cenário distópico.
A propósito, os efeitos visuais computadorizados são pavorosos, e acho que todos têm olhos bons o bastante para perceberem isso. Mas são ruins enquanto tentam ser bons. A encenação à frente do fundo verde salta aos olhos mesmo que o espectador não veja tal fundo, senão a artificialidade da criação. E isso até poderia ser um bom recurso - os efeitos visuais serem propositadamente artificiais como um instrumento de denúncia daquela sociedade artificial -, mas duvido que McG seja o cara que pense nisso. Assim como não refletiu na implicação de escalar Laverne Cox, uma atriz trans, portanto que passou por uma transformação, no papel da vilã da narrativa. Pode ser só coincidência à qual estou dando mais conteúdo do que deveria, mas não quero imaginar que ninguém debateu que poderia ser uma má ideia escalar a atriz como o rosto da vilania do processo de transformação.
Mas o que esperar de Feios, cujo roteiro é um Frankenstein de reescrita, cujo diretor é genérico e burocrático para dizer o mínimo e cujo elenco é um mix representativo mas cuja representatividade é a única qualidade (não consigo pensar em um ator ou atriz, só um que tenha me enchido os olhos como Jennifer Lawrence ou Shailene Woodley fizeram em suas franquias respectivas). É um filme datado e cujo tema é tratado como uma harmonização facial mal feita.
Feios está disponível no catálogo da Netflix.
Fiquei interessado em assistir, claramente não é grande coisa, mas estou sempre com disposição de assistir filmes deste estilo com qualidade duvidosa. As vezes acho que mesmo que a execução ou o resultado final não sejam lá grande coisa, ainda vale assistir e pensar sobre - é uma forma que gosto de passar o tempo.