Ainda que oriundo de uma franquia estabelecida e com um diretor experiente, Mad Max: Estrada da Fúria foi uma aposta arriscada que ousou substituir Mel Gibson por Tom Hardy e tornar Max Rockatansky coadjuvante da história que levava o seu nome. No lugar dele, Imperatriz Furiosa, personagem que nasceu icônica pela atuação de Charlize Theron, e que tem agora a mitologia enriquecida por Anya Taylor-Joy e Ayla Browne (na infância) em Furiosa: Uma Saga Mad Max. Diferentemente do desafio do antecessor, que era trilhar uma estrada incerta que o levou à conquista de 6 Oscars (merecia ainda o de Direção e, por que não, Filme), o deste Furiosa é o de honrá-lo. E George Miller evitou repetir a fórmula de ação intensa e ininterrupta em favor de uma abordagem épica e operística.
Dezoito anos separam o rapto de Furiosa da idílica Cidadela Verde até ter se tornado a Imperatriz que salvou as esposas de Immortan Joe da violência a que estavam submetidas em Estrada da Fúria. Um período condensado habilmente por George Miller em aproximadamente 2 horas e meia, estruturadas de maneira operística em 5 atos, que cobrem os eventos capitais que definiram Furiosa. Em vez de a história de origem enfraquecer a personagem, faz o contrário, ao valorizar os eventos de Estrada da Fúria e não procurar se escorar senão em parte do conceito visual pós apocalíptico (com o dia alaranjado em contraste com a noite expressivamente azulada). Há acenos, mas não uma nostalgia descontrolada, apoiando a narrativa na tragédia de vingança da personagem-título contra o homem que matou a sua mãe – Dementus, interpretado por Chris Hemsworth em seu melhor papel até então.
A vingança remete ao original de 1979, lançado há mais de 45 anos, e abastece o motor V8 de uma protagonista implacável que dispensa palavras supérfluas, em prol do agir. E Anya e Ayla têm uma presença fortíssima no olhar resiliente, equilibrada com o jeito verborrágico, bonachão e violento do ‘salvador da pátria’ de Hemsworth, que optou pelo caos para enfrentar o luto.
Só que a ação não é o objetivo final como era em Estrada da Fúria, em que a trama era a justificativa para a perseguição. A ação é o meio pelo qual os personagens expressam vontades e desejos. Há decisões visuais criativas, igual ao anterior, em forma de paraquedas ou asa-delta, mas a ação é menos contínua e o ritmo menos frenético (por exemplo, não há a técnica do frame ramping, que consiste em ajustar a quantidade de quadros por segundo para dar a impressão de maior aceleração da movimentação). O foco está no aprofundamento dos personagens e na ampliação da mitologia (há um momento que um ou outro produtor irá sugerir como ideia para um outro capítulo), e a compreensão do conceito de saga e épico que dispensa vinte e cinco filmes para tal.
A estrada de Furiosa é da abundância à escassez, do altruísmo à vingança e do teor religioso contido em uma personagem que rouba o fruto proibido (um pêssego e não uma maçã) até iniciar uma revolução contra o patriarcado – representado na figura de Dementus e Immortan (em Estrada da Fúria). Esta estrada reproduz um mundo de guerras que George Miller apresenta na introdução e que associa com o ontem e o hoje infelizmente, um mundo de homens para homens, não de mulheres para todos.
É por essa razão que Furiosa atravessa um processo de transformação visual que a capacita a sobreviver naquele mundo, e, de dentro para fora, talvez mudá-lo para melhor (a partir de uma imagem final marcante e intrigante no recorte narrativo e simbólico). Nem que esta imagem seja mais uma lenda, do que fato.
E a despeito de ser uma obra que discute a importância da figura de um historiador, Furiosa prefere imprimir a lenda e, ao fazê-lo, agiganta uma já imensa personagem do jovem clássico de 2015.
Crítica publicada originalmente durante a cobertura do Festival de Cannes para o Jornal Metrópoles.