Após ter anunciado a aposentadoria, desaposentado e encerrado temporariamente a parceria com o irmão Joel (que rendeu os clássicos Onde os Fracos não Têm Vez, Fargo, Bravura Indômita, O Grande Lebowsky), Ethan Coen lançou o documentário biográfico Jerry Lee Lewis: Trouble in Mind (2022) e esta comédia de humor ácido, meio Thelma & Louise, Garotas em Fuga (2024). Considerando-se o elenco reunido, Ethan ainda possui muita credibilidade dentro da indústria, embora pareça faltar, às ideias de seu roteiro que não fogem daquelas que o roteirista habituou-se a escrever (histórias sobre crime, punição, acaso, determinismo etc.), o olhar cinematográfico sofisticado do irmão, que agora já podemos deduzir que é quem atribuía o estilo do cinema dos irmãos.
O roteiro é um que Ethan poderia escrever de olhos fechados, e envolve as melhores amigas Jamie (Margaret Qualley) e Marian (Geraldine Viswanathan), que alugam um carro para viajar em direção a Tallahassee (na Flórida). Mal sabiam que o porta-malas do veículo continha itens que a gangue chefiada por Colman Domingo, uma valise na corta prata e uma caixa misteriosa. Não é o mesmo tipo de maleta de Pulp Fiction e de Ronin, já que o conteúdo dela tem relação com a temática do empoderamento sexual e emocional que é desbravado durante a viagem de carro. Além dos atores, Pedro Pascal e Matt Damon realizam participações especiais, e Bill Camp, do jeito character-actor (o ator operário), tem uma presença inspiradíssima e que logo me resgatou a memória do trabalho dos irmãos.
Entretanto, a narrativa de Ethan é um tanto desequilibrada: ela aposta no elemento do humor, mas não balanceia com a acidez necessária para sentirmos suas consequências e resoluções. A inconsequência de Jamie talvez contamine o ponto de vista de Ethan, e posso exemplificar com uma hipótese: e se as as comédias de erros ou comédias ácidas anteriores dos irmãos Coen tivessem abrandado a tragédia, será que teríamos criado a preocupação com o Dude de Jeff Bridges ou a Marge de Frances McDormmand? E não é que Garotas em Fuga não seja violento. Até é, mas a violência não oferece o impacto e o peso emocional para que nos importemos com o destino daquelas garotas - que mais gritam do que dialogam.
O desejo de Ethan de narrar o amadurecimento de um relacionamento lésbico no final da década de 90 esbarra tanto na comparação inevitável com Love Lies Bleeding (2024) - a bem da verdade, ambientado anos antes - quanto na insistência da direção com sexo oral encenado, de uma maneira mais cômica do que prazerosa, embora não seja menos fetichista por isso. Posso considerar curiosamente engraçado que a personagem vivida por Beanie Feldstein tenha um consolo parafusado na sala de estar da residência, pois é um objeto cênico que não esperava encontrar daquele jeito e daquela maneira, e sim escondido timidamente no interior de uma gaveta. E o fato de estar onde está ilustra a personalidade livre de Jamie, a dona do presente e que costuma conseguir as coisas do jeito que ela quer, sem se preocupar muito com o dia de amanhã. Mas no restante do tempo, não há muito semelhante no relacionamento de Jamie e a introvertida Marian - apenas protocolar, com aquela servindo de guia sexual para a última.
E enquanto repete o semblante de Margaret Qualley encenando prazer, a obra vira e mexe retorna à repressão sexual como um gatilho para que os personagens cometam atos de brutalidade, tipo aquele bastante cartunesco e, ao mesmo tempo, sanguinário da cena inicial. É um tom que Ethan não reconcilia, em termos de humor e tragédia e de sexo e violência, e com os meros 84 minutos de duração, tampouco há tempo para que a direção aprofunde-se. Não em termos de construção de personagens, até porque a caricatura já é eficaz, mas das associações criadas, tipo quando os capangas chegam à equipe de futebol composta por mulheres lésbicas e encaram a própria inadequação sexual.
Apenas sobram as caricaturas, e a dos capangas talvez seja a melhor que o filme tenha produzido (com ecos daqueles de Fargo), e não as relações ou os temas ou o tradicional nonsense do cinema irreverente e trágico do autor. Além do mais, ainda que goste das inserções de Miley Cyrus em um contexto sexual e psicodélico, a montagem de Tricia Cooke parece ter sido realizada com aqueles efeitos gratuitos do CapCut, e não afirmo isto com o mesmo valor kitsch do consolo pregado na parede. É o símbolo que melhor reflete o que é o filme, a tentativa de ser uma obra descolada sobre liberdade sexual e crime, jovial em termos de linguagem, mas que mal arranha as obras pregressas de um diretor que precisa MUITO reencontra o irmão.
Garotas em Fugas entrou no catálogo da Prime Vídeo.