Eu não assisti à minissérie estrelada por Tony Ramos e Bruna Lombardi de 1985, a primeira adaptação audiovisual do marco da literatura escrito por João Guimarães Rosa, nas não tenho a menor dúvida de que a versão de Guel Arraes (de O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro) é ambiciosa ao adaptar os eventos narrados no livro para o tempo presente - embora não identificável, sequer localizável - enquanto conserva decisões estilísticas ímpares do romance. É uma narrativa cinematográfica por excelência, na forma como intensifica os elementos audiovisuais empregados na estrutura enérgica da montagem, ainda que abrace com força o linguajar rebuscado e declamatório, habitualmente associado ao teatral. Grande Sertão é muita coisa, e pode ser criticado por muito mais, só não pode ser por não proporcionar uma experiência maximizada pela sala de cinema.
A narrativa tem início em um tempo futuro, quando Riobaldo (Caio Blat), já marcado pela idade e por tatuagens que expressam o que passou, lembra o dia em que conheceu Diadorim (Luísa Arraes). Riobaldo conversa com um interlocutor oculto, mas não com o público, como se estivesse sendo o objeto de um documentário - não muito diferente do que a obra original, portanto. Entretanto, tal como o o passado, o presente também não é um ambiente enxergado de maneira monocromática. É um presente inconstante, como se a revisitação das memórias abrisse crateras dentro de Riobaldo, e provocasse um terremoto formal. Múltiplos ângulos e enquadramentos, múltiplos filtros de cor, e um Caio Blat dando uma pulsação arrítmica do monólogo adaptado no roteiro de Guel Arraes e Jorge Furtado.
É então que Grande Sertão viaja ao passado e, neste cenário especulado não diferente do que poderíamos encontrar em um ‘filme de favela’, a direção encanta o nosso olhar. Barracos literalmente montados uns sobre os outros, como se estivéssemos diante de frutos de uma floresta. Uma floresta adensada com frutos que desrespeitam realismo, lógica e acessibilidade, mas não a ambição criativa que é sempre o valor em que Guel mira (e muitas vezes acerta). Este Sertão, um conceito abstrato, não concreto como era no livro, comunica a ideia massacrante de uma vida sem escapatória. O muro ao redor confina Riobaldo, Diadorim, Hermógenes e os demais aos próprios destinos, e quando uma personagem comunica que irá embora, a primeira ideia que me veio à cabeça foi “para onde?”.
O cenário surreal é palco de um conflito real. O ouro por que os portugueses mataram Tiradentes não é mais a pepita dourada, é o pó branco, a “moeda” por que o tráfico e a polícia matam-se (e matam os outros), diariamente nos conflitos no Sertão. Tudo inicia após o maquiavélico Hermógenes (Eduardo Sterblitch, irreconhecível e com chifres na forma de sinais na testa), interromper o período de trégua entre o líder do tráfico Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi) e o capitão da polícia Zé Bebelo (Luís Miranda), causando a morte da filha de Otacília (Mariana Nunes), que enlutada decreta com a intensidade característica da atriz: “Quando matam uma criança, até Deus está errado”. Riobaldo, um professor de escola pública, é obrigado a agir contra sua natureza dentro desse mundo de violência perpétua em que o indivíduo é alvo de forças antagônicas e conflitantes, e ao mesmo tempo, nada óbvias.
Zé Bebelo é, a princípio, ícone do nazifascismo, retratado a partir do sobretudo preto, da mão em riste diante de policiais enfileirados e do bordão “Viva a lei”, como se a lei desprovida de moral pudesse ser mais do que instrumento de opressão daqueles cujas vozes não são escutadas por quem as redigiu (não é em vão que Zé Bebelo deseja usar a farda para eleger-se deputado: deixar de ser quem obedece as leis, mas quem as cria). Já Joca Ramiro é o criminoso com honra e ética que, caso não chefiasse a organização criminosa do Sertão, poderia ser um cidadão funcional na sociedade. Ao denominar os subalternos de “Meus filhos” e acolher até o mais bestial de todos, Hermógenes, Joca desempenha o papel fraterno. Esses papéis antagônicos e contraditórios que poderiam ser ilustrativos dentro do Brasil de hoje, complicam-se quando Zé Bebelo é obrigado a tomar decisões que o aproximam de sua humanidade, ou ao menos de valores nobres.
Até porque ainda que pareça óbvio na superfície - já que os personagens interpretam ideias -, Grande Sertão é um retrato contundente de uma realidade brasileira na qual o indivíduo está com a mão (ou até o dente) sujo de sangue. A sala de aula onde Riobaldo leciona tem o quadro construído atrás da cerâmica, como se a educação fosse um valor escondido pelo poder público e que o povo tivesse que ‘quebrar paredes’ para acessar, por exemplo. Já a questão da identidade de Diadorim (Luísa Arraes), é a encenação da ambiguidade governante daquele mundo de homens violentos e mulheres sensíveis. O homem que tira a vida, a mulher que enterra a filha, e Diadorim entre estes mundos.
A lógica visual merece discussão. A câmera permanece próxima dos personagens, e com frequência rara recorre a planos abertos (que estabelecem a geografia do Sertão). Isto reduz a profundidade de campo e transporta a claustrofobia daquela localidade para o espectador. A montagem é angustiante e frenética, com cortes de uma mesma ação enxergada por meia dúzia de ângulos, criando versões do mesmo eventos, porém não a verdade que porventura tenha. Já a diminuição na velocidade da taxa de quadros que tem como efeito a lentificação da ação e a pluralidade de filtros coloridos e super expressivos, banhados ocasionalmente pelo néon, retratam um mundo longe do céu, perto do inferno, e integram-se a um arsenal de elementos empregados pela direção. Guel pode parecer não ter o controle e discernimentos que nós poderíamos exigir de produções convencionais. Mas Grande Sertão nada tem de convencional.
Este Sertão tem alma cinematográfica própria, sem desonrar as raízes literárias. É uma criatura artística que somente poderia nascer e habitar na realidade surreal concebida pela direção e povoada por personagens-ideias. Se João Guimarães Rosa experimentou então é apenas razoável que Guel Arraes faça o mesmo, e se o resultado não alcança o brilhantismo da obra original, não é por demérito seu, é apenas porque aquela história é uma estrela inalcançável. A alma da obra literária está presente com um corpo outro, com excessos, com verborragia audiovisual, mas com personalidade digna de aplausos.