Criminosos, ou gângsteres, sempre foram uma matéria-prima cinematográfica muito explorada no cinema norte-americano, talvez como meio de simbolizar a inversão de valores durante a Grande Depressão e a idealização do herói criminoso que deitava e rolava com a polícia que representava a falência do Estado. Al Capone era uma figura carismática, afinal de contas, não o agente federal Eliot Ness, uma visão desafiada por Brian De Palma em Os Intocáveis: o Al Capone de Robert De Niro era feio, no sentido estético e moral; o Eliot Ness de Kevin Costner, o paladino da justiça. A balança moral parecia ter voltado aos conformes.
Os Intocáveis não é bastante expressivo do cinema gângster pós-Nova Hollywood, e o mesmo Brian De Palma construiu a figura sedutora e perigosa do traficante de drogas cubano Tony Montana, vivido por Al Pacino com a sua habitual eloquência e talento. E O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, ou Cassino e Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, fortaleceram o olhar glamourizado em direção à figura do gângster: paletós e smokings bem alinhados, cabelo encerado na brilhantina, festas nababescas na companhia de mulheres charmosas, mansões construídas sobre a dor e a violência, e mais importante, o respeito daqueles que o cercam. É até compreensível o sonho de Henry Hill enunciado em Os Bons Companheiros.
“Até onde me lembro, eu sempre quis ser um gangster.” (Henry Hill, Os Bons Companheiros).
É bem verdade que o glamour era mediado pela brutalidade necessária para alcançá-lo, e encerrado pela instabilidade e precariedade daquele estilo de vida a momentos de acabar. (Mas não é assim com a vida, de modo geral?).
O glamour está entranhado no gênero, um tipo de as vantagens de ser um gângster, e que ainda incorporou as particularidades sociais ou culturais para se expressar: vide o cinema gângster negro norte-americano de Homens Perigosos, Os Donos da Rua ou O Gângster ou o cinema gângster latino-americano de Heli ou Narcos, cujo produtor Eric Newman é um dos nomes responsáveis pela minissérie Griselda. Antes, a identificação com o gângster cinematográfico era arteira e maldosa; agora, é até inevitável e talvez isso não seja bom.
Griselda dramatiza a ascensão e queda da narcotraficante que dá nome à série, vivida por Sofia Vergara, uma mulher que sofreu um bocado nas mãos do marido, irmão do chefe de cartel de drogas em Medelín, até alcançar o limite. O basta vem na forma do disparo fatal contra o marido e da fuga em direção a Miami, onde, com um bloco de cocaína na mala, pretende vendê-lo para começar do zero a sua vida. Só que Griselda sabe o agridoce gosto da vida que o crime organizado proporcionou e, rapidamente, apesar de enfrentar a objeção do chefão local, Amilcar (o hondurenho José Zúñiga), e de seu distribuidor Papo Mejia (Maximiliano Hernández), ascende explorando a avidez da alta sociedade. O restante é fácil de inferir: Griselda derruba, rival por rival, até se estabelecer no topo da pirâmide, uma Cleópatra à frente da organização que atrai os olhares da obstinada detetive June (Juliana Aidén Martinez).
Eu não vou entrar em detalhes da trama. São conhecidos os meandros pelos quais a narrativa percorre, com uma dose de alternativas inesperadas, bem características do cinema gângster de Martin Scorsese, em que a violência, apesar de similar à umidade e ser sentida na atmosfera, materializa-se brutal e inesperadamente em instantes que afirmam a periculosidade daquele ambiente. Tampouco há muita novidade na forma narrativa, com a encenação conferindo características maternas à Griselda, ainda que estas não sejam dirigidas a quem mais precise: os seus filhos. Há também o romance com o guarda-costas Dario (Alberto Guerra) e seu atrito com o assassino Rivi (Martín Rodríguez).
É o gênero que diferencia Griselda de ser apenas um retrato trivial da narcotraficante. O fato dela ser mulher e mãe rearranja e problematiza a relação do espectador com o gênero. A identificação é engatilhada pela própria situação em que Griselda está: uma vítima de abuso, sem ter a quem recorrer para cuidar de si e dos filhos, menosprezada e desrespeitada por ser mulher e ainda em razão da profissão ocupada anteriormente (de prostituta). Torcemos por ela, que louco pensar nisso. Torcemos para que derrube os traficantes, e tome-lhes o trono que lhe é devido. Torcemos pelo crime, que está no centro das problematização do gênero, até deixarmos de torcer.
A propósito, a narrativa é maliciosa, pois contrapõe Griselda a June, que enfrenta as mesmas dificuldades dentro do departamento de polícia. Ela é alvo de piadas sexistas, tem a competência questionada a cada relatório e memorando abandonado sobre a mesa de seus colegas antes de conhecer a lata de lixo. Só que nesse jogo de polícia e bandida, em que esta possui maior tempo de tela, maior exposição dramática e maior estrela - Sofia Vergara, que é relativamente desacreditada em Hollywood, por ser uma imigrante colombiana com sotaque marcado escalada frequentemente em comédias exploratórias dessa característica -, é difícil não torcer para que Griselda, pelo menos, arrependa-se dos crimes que cometeu e tenha restituída a dignidade roubada lá nos primeiros episódios.
Se os filmes de gângsteres citados questionavam a identificação do espectador com o poder e a riqueza, a partir dos desfechos violentos e trágicos, Griselda não critica, mas alimenta essa identificação até onde pode. A conta chega tardia nos episódios finais, não pelas condutas, mas pela vida desregrada, pelos ciúmes doentios e pela perda da “posição maternal”. É onde a minissérie me perde. Ao alcançar o topo, Griselda Blanco adota os mesmos comportamentos relacionados aos homens que a precederam. Seu império desmorona ao perder o que o diferenciava: a relação estreita e até maternal (seu apelido era Madrinha) com a qual cativava aqueles que morriam nas ruas por ela.
Eventualmente, a própria maternidade é literalmente roubada; quando isto acontece, para mim, fica difícil saber se Griselda quer ser somente o drama criminal típico, com a lição de moral de que o crime não compensa (não compensa até o fim), ou se quer propor questões maiores em relação ao gênero. Talvez eu esteja esperando demais.
Bandidagem sempre deu Ibope, e a máfia ou os gângsters são a vertente certamente mais glamorizada do cinema ou televisão. Eu curti os primeiros episódios também e terminei no automático (talvez na velocidade 1,25x kkkkk), já achando mais do mesmo. Há um esforço de criação de personagem por parte da Sofia Vergara, inclusive com maquiagem pesada, mas ainda não vi uma grande atriz de drama nela, talvez por não conseguir desvincular da personagem dela em Modern Family. Foi um série "marromenos" como diz o maranhense.