Uma parte relevante da obra de Clint Eastwood, libertário até a última consequência, enfatizou a batalha individual em face à sociedade inerte e às instituições falíveis. No seu cinema, você pode questionar as ações dos personagens, mas compreende por que decidem ocupar as lacunas deixadas pela apatia, burocracia e corrupção institucional. Jimmy Markun, personagem de Sean Penn em Sobre Meninos e Lobos, poderia aguardar a conclusão da investigação da polícia, mas decidiu fazer justiça com as suas mãos; já Christine Collins, vivida por Angelina Jolie em A Troca, é uma vítima das instituições. Eu poderia continuar e debater os anti-heróis do faroeste (William Munny, por ex.) ou do policial (“Dirty” Harry), mas acho que me fiz claro. Então, não é nenhuma surpresa que, em Juror #2, Clint não tenha modificado significativamente o seu olhar à falência institucional, até porque não houve progresso, somente retrocesso na (alegadamente) maior democracia do mundo.
Clint faz isso a partir do roteiro do estreante Jonathan Abrams, um drama/thriller de julgamento que é uma oportunidade para criticar a justiça estadunidense, a partir da ação e omissão do homem médio, Justin (Nicholas Hoult), convocado para ser jurado durante a gravidez de risco da esposa Allison (Zoey Deutch). Ele decidirá um caso de alegado femicídio, que também pode determinar a eleição de Faith (Toni Collette) ao cargo de Promotor Chefe da Geórgia. A crítica já é evidenciada desde as negociações entre a Promotoria e a Defensoria Pública - os plea bargains, ou acordos judiciais, em que o réu assume a autoria do crime (tendo-o cometido ou não) em troca de uma pena reduzida, aumentando a produtividade do promotor (que é considerado mais atuante) - e é retomada em outros momentos, como na comparação entre a carga de trabalho ou de orçamento entre as instituições (a que acusa e a que defende) e na comprovação de que o homem médio não faz ideia de que é a acusação que deve provar a culpa do réu, e não a defesa a sua inocência.
O roteiro explora as etapas do julgamento e não o sensacionaliza: as alegações inicias e finais são sóbrias, o tratamento entre os advogados é respeitoso, a palavra “objeção” só é ouvida uma vez por toda a duração da narrativa, e o que vemos são pessoas iguais a mim e você fazendo o seu trabalho: Faith não deseja condenar James (Gabriel Basso) porque é uma promotora inescrupulosa, mas sim porque é o trabalho dela; Eric (Chris Messina) é um advogado de defesa zeloso e idealista, apesar de ser preconceituoso em um momento durante a acareação para compor o júri. Todos os personagens carregam nuances, e o que poderia servir de atalho óbvio para o seu desenvolvimento, é colocado em evidência, como o detetive aposentado interpretado por J. K. Simmons, que em vez de ser punitivista (é o que o cinema ensinou a esperar do policial), é quem oferece uma interpretação que não o feminicídio para o caso.
Só propor o julgamento de um feminicídio em que o réu, um marido abusivo, tem toda cara de ser inocente, até por se assemelhar ao clássico-mor do subgênero, 12 Homens e uma Sentença, revela o incômodo de Clint Eastwood com a política contemporânea das redes sociais do ‘condene agora, prove depois ou nunca’, uma consequência do mundo da pós verdade. Clint não passa pano ao crime, mas sim ‘julga’ o viés confirmatório de quem acredita somente nos fatos (e factoides) que correspondem às crenças de mundo, em vez de se dar ao trabalho de perseguir hipóteses inexploradas. A direção enviesa a abordagem ao indivíduo, e agora questiona o que acontece quando a sua ação corrói e corrompe instituições vulneráveis. Não é só sobre a ação, é sobre a responsabilidade.
Justin é exemplar como protagonista. Um estadunidense médio, inicialmente honesto e responsável (consideradas as ações realizadas no ato inicial), cujo passado sombrio e traumático - é um alcoólatra em recuperação, que enfrentou uma perda -, possibilitam uma identificação imediata. Contudo, Justin tem um segredo que pode reverter todo o julgamento e é baseado nele que começa a agir como se fosse Henry Fonda no clássico já mencionado de Sidney Lumet. Se neste o personagem reconhece o óbvio - que o réu, não importa quem seja, nem de que crime seja acusado, merece uma deliberação justa -, Justin age com egoísmo, não altruísmo. As suas ações até podem beneficiar a justiça como um relógio quebrado que dá a hora certa uma vez por dia, mas o seu motivo para agir é individualista na tentativa de conciliar o irreconciliável (preservar o seu segredo e encarar-se no espelho como um homem bom).
Hoje, prefiro críticas como a de Juror #2 do que a de obras panfletárias. Clint, diferente da Estátua da Justiça (vendada para ser imparcial) ou Alisson (vendada, pois não sabe a verdade), compreende que as instituições falham por ações e omissões individuais, não por um complô maior da elite socioeconômica (que exploram exatamente essas falhas). Justin tem a chave da justiça e verdade consigo, mas, irresponsável, opta por mobilizar pessoas e instituições. A responsabilidade individual é aludida, ainda que brevemente, na mensagem no rádio convocando os eleitores a votar, e todos os personagens, de um jeito ou de outro, são convidados a assumir suas responsabilidades (os jurados a darem o seu tempo a apreciação das evidências, a promotora a investigar com profundidade o crime que acusa ou mesmo o personagem interpretado por Kiefer Sutherland).
Mas a sensação é de que as instituições são análogos de um bar à beira de estrada - os planos de estabelecimento relacionam-no ao tribunal, onde o crime é julgado -, assim como os personagens estão presos a si próprios. Pode até ser elementar, mas é eficaz e consistente a onipresença de persianas ou de barras, para aludir à sensação de que nós todos estamos presos nessa sociedade falida, e mesmo o porta-retrato na residência de uma testemunha ocular tem um cavalo… atrás de uma barra. Da mesma maneira, o uso de sombras impressos sobre o rosto de Justin ou sob seus olhos acentuam a dubiedade e responsabilidade do homem médio, enclausurado debaixo de um céu de árvores e do teto (quando é confrontado por Alisson). É ele quem está sentado no banco dos réus do cinema de Clint Eastwood, pois é seu individualismo que prejudica a vida comunitária e coletiva.
Se Juror #2 for, de fato, o filme de despedida de Clint Eastwood - hoje, com 94 anos - é um adeus de um artista que empregou a câmera para registar, a partir de um ponto de vista que jamais negou, a história da sociedade estadunidense. Você pode até criticar a sua visão de mundo, mas é impossível não admirar sua coerência e seu oportunismo.
Juror #2 não tem data de estreia no Brasil, e ainda pairam indefinições se irá estrear nos cinemas ou, apenas, nos serviços de streaming.
Acabei de assistir agora pouco e, logo depois, li sua crítica, muito bem elaborada, por sinal. Uma história simples nas mãos de alguém que sabe contar uma boa história me deixa tão satisfeito quanto uma história inovadora mal aproveitada me deixa com raiva.
Melhor filme de 2024, na minha opinião.