Linha Verde (Green Line)
Já faz alguns anos que comecei a me interessar pela história de meus ancestrais. Eu somente tinha um conhecimento superficial de que meus avós ou bisavós vieram do país, por volta da década de 30, fugindo de guerra e perseguição religiosa, da região denominada Zalé. Tenho conhecimento das anedotas recordadas pela minha mãe, a respeito de meus avós ou da avó dela, da história deles após ter chegado ao Brasil, ao Maranhão, mas nada exatamente concreto. Soube, há pouco, que o nome que pensei que era do meu avô, Armindo, na realidade é Ahmed, um nome muçulmano, talvez a revelação de que tenha sido muçulmano antes de se converter ao cristianismo. E não terei respostas concretas, disso eu sei, embora saiba que minha identidade passa pelo reconhecimento de que, nascido brasileiro, minha herança é inteiramente libanesa e, um dia, ainda conhecerei o país.
Enquanto isso não aconteceu, viajo para lá através da história contada em filmes tais como Linha Verde, documentário dirigido por Sylvie Ballyot, a partir da experiência e memória de Fida Bizri, sobrevivente da Guerra Civil ocorrida em Beirute, nos anos 80. Sylvie e Fida conheceram-se em Paris, em 2006, enquanto o Líbano atravessava mais uma guerra: “Eu me interessei em como ela falava de uma maneira pessoal e diferente, sem citar a parte religiosa ou os inimigos, mas discutindo a vida, a morte e através de sua própria linguagem”, explicou Sylvie.
Revisitando a memória e o trauma da infância, Fida, testemunha ocular da brutalidade e desumanidade do conflito armado entre muçulmanos e católicos, separados por uma linha verde, procura compreender o que impele um compatriota a pegar em um fuzil e mirar em outro, mesmo que este outro seja uma criança. Embora trate de eventos que estão inscritos no passado, o documentário dialoga com o mundo contemporâneo, pós a invasão da Palestina por Israel e os ataques ocorridos no Líbano precipitarem uma nova guerra naquela região, incapaz de respirar a paz por um período significativo. E fazem isso a partir de uma ótica inicialmente individual, depois universal.
Em um trecho do documentário, Fida revive um instante da infância em que teve uma arma por um miliciano. “No início, foi muito complicado para mim, mesmo antes de reviver em filme, enquanto relatava para Sylvie, pois me forçou a abrir uma caixa do passado, pensar em detalhes. Uma vez que conversamos a respeito, torna-se menos importante do que parecia ser, torna-se menor, apenas uma história. Ao assistir à animação, senti-me alienada de minha memória, e isto foi bom, porque ficou diferente para mim”, explicou Fida.
Com uma narrativa multifacetada, Sylvie emprega bonecos semelhantes a Playmobil, animados em stop-motion (que gentilmente Sylvie e Fida permitiram que tomasse em minhas mãos) para recriar os eventos da infância de Fida. Os bonecos têm um aspecto artesanal e universal, e remeteram-me a A Imagem que Falta, de Rithy Panh. E não só a esse, mas ainda ao documentário Valsa com Bashir, de Ari Folman, não exclusivamente pela temática, e sim pelo papel determinante da memória na formação do indivíduo, e a O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer, em razão do diálogo e confrontação havido entre Fida e os ex-milicianos (ou envolvidos na guerra civil de alguma forma).
Ao discutir a abordagem de confrontação, Sylvie revela: “No início, não imaginava que nós iríamos encontrar milicianos, enquanto escrevia o roteiro. Com o andar do tempo, tive a necessidade de obter mais depoimentos da guerra, as pessoas de Beirute ocidental e oriental, aí o filme se transformou em um filme de palavra. E a confrontação é muito importante para isso”. É o momento em que a narrativa transforma-se: a sua investigação desloca-se da memória individual para coletiva em que cada uma daquelas pessoas proporciona um pedaço para formar a imagem da banalização da guerra (também assistido em vídeos de arquivo).
O documentário também explora papéis de gênero. Fida, mulher, é interrompida com bastante frequência pelos interlocutores, homens, um deles considera que ela deveria sentir-se grata à milícia por ter protegido e salvado a sua vida. Fida discordou de meu ponto de vista: “Eu não estava me posicionando como uma mulher e não estava os vendo como homens; o que eu senti é que eu lhes dei a liberdade de não concordar comigo, e me dei a liberdade de não concordar com eles. Eu os tratei da mesma maneira que eles me trataram”. Sylvie acrescenta: “Eles estavam considerando Fida como uma amiga, ou uma irmã”. Mas não discorda que alguns daqueles mesmos homens podem ter estado seduzidos pela inteligência de Fida.
O resultado é catártico. A recriação de uma maquete do Líbano, em um cenário muito simbólico - uma escola destruída, sem sobreviventes - e a forma com que Fida inquire e escuta aquelas pessoas jamais responsabilizadas permitem ao espectador enxergar o panorama histórico. A respeito da responsabilização, Fida opinou: “Eu não penso que estou aqui para trazer a justiça, o meu papel como pessoa é compreender, e tudo o que quero deles é que me contem as suas histórias. Para mim, isso é arquivo. Eu queria saber como um ser humano é capaz de realizar isso. Eu não estava lá porque pensava ‘Eles fizeram algo muito ruim e precisam ser julgados’, eu não acredito em julgamento”.

Talvez eu não acredite na possibilidade de calçar os sapatos daquela garota de vestido vermelho que teve uma arma apontada e viu a sua vida passar em um flash, embora ao menos possamos sentir o que a impele a visitar o passado e a exorcizá-lo em direção a uma esperança. Uma pena que a esperança, considerados os eventos recentes, termine por comprovar a argumentação desse documentário.
Linha Verde venceu o prêmio MUBI para melhor primeiro longa-metragem e o prêmio do júri jovem do Festival de Locarno.
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