Depois de Upgrade (2018) e O Homem Invisível (2020), Leigh Whannell rapidamente se tornou uma sumidade do horror de baixo ou médio orçamento, e com méritos. A sua filmografia é menor só em termos de orçamento (os filmes que citei, respectivamente, custaram 3 e 7 milhões de dólares, uma barganha em Hollywood), já que Leigh teve a habilidade de infundir, com criatividade à moda clássica e humanidade que nunca sai de moda, valores de produção significativamente maiores do que aqueles orçamentos comportariam a princípio - os bastidores de O Homem Invisível até hoje são conteúdos virais nas redes sociais. Com este Lobisomem, Leigh tem a oportunidade de abocanhar mais um clássico do horror, com um orçamento ainda mais significativo, embora com resultados menores.
O roteiro coescrito por Whannell e Corbett Tuck parece influenciado não apenas pelo “monstro” popularizado pela Universal em O Lobisomem (1941), mas pela sua primeira aparição cinematográfica no curta-metragem The Werewolf (1913). Digo parece porque a cópia do curta foi perdida no incêndio de 1924, na Universal, e só me resta a sinopse que fala de uma lenda indígena - um elemento que os roteiristas conservaram para contar a história de Blake (Christopher Abbott), que na infância foi criado apenas pelo pai, com uma disciplina militar, em uma casa encravada no seio da floresta do Oregon. Década depois, morando em Chicago e desempregado, Blake recebeu a carta que tanto ansiava, pela qual o Estado reconhece a morte de seu pai, cujo corpo nunca foi achado. Ele reúne a esposa, Charlotte (Julia Garner), e a filha Ginger (Matilda Firth), e retorna à casa onde foi criado apenas para ser atacado por uma criatura na floresta, e começar a transformar-se em um lobisomem.
O contexto familiar é pertinente. É Blake que cuida da criação da filha, não Charlotte, uma jornalista e aspirante à escritora, apertada até o pescoço de trabalho (a gola rolê é um toque de gênio no figurino), mas que dá um jeito de tirar dias ou semanas de folga para retornar à casa do pai de Blake, ver a tal vista de tirar o fôlego que ele tanto cita e ainda reacender a união da família. Charlotte lamenta estar ausente da criação da filha e até ressente a relação afetuosa entre pai (o protetor) e filha (a protegida), manifestada na dinâmica de que não participa e que só assiste à distância. Whannell chacoalha não somente os clichês, mas a própria dinâmica de uma família média de antigamente, em que o pai era o provedor ausente, e a mãe, o afeto presente. E Blake é um pai antitético do seu: ele adota uma comunicação não violenta com Ginger, e é honesto a ponto de se desculpar por tê-la submetido ao que provavelmente poderá traumatizá-la no futuro.
Admito que eu não sei bem como me sentir em relação a Blake. Talvez sinta o mesmo que Ginger sente quando aproxima-se do pai “bestializado”, numa criatura inominada. A ambiguidade me corrói. De um lado, Lobisomem merece elogios por apresentar e até propor um modelo de paternidade educador, não autoritário, horizontal, não vertical, e desenvergonhado em pedir desculpas quando as premissas dessa paternidade forem frustradas, afinal Blake é só humano e propenso a errar. De outro lado, Blake parece a idealização de uma paternidade liberal da Costa Leste estadunidense. Um estereótipo, e não uma pessoa, artificialmente fabricado para que o roteiro explore toda e qualquer possibilidade em torno dele e da transformação no monstro título.
O pai bondoso transformado em um monstro que, paulatinamente, perde a habilidade de compreender e enxergar a filha. A mãe que precisa reclamar a posição de protetora da filha, e construir, ainda que forçosa e desesperadamente, os laços que possibilitem que sobrevivam ao fim. Dessa maneira, Lobisomem parece idealizado para maximizar a interpretação da transformação de Blake na criatura, e não para experimentarmos esse processo. O Homem Invisível explorou o terror do abuso doméstico e o empoderamento da protagonista em face ao algoz, mas o fez sem soar um terror espertinho metafórico. Lobisomem, nem tanto. E isso fica mais evidente diante de opções da direção: por ex., o plano em que mãe e filha veem a vista panorâmica que Blake havia-lhes prometido, ou do roteiro: por ex., a revelação da identidade do lobisomem cria paralelos óbvios, e que só não revelo em honra a spoilers.
Whannell é mais bem sucedido no horror, porque é um diretor paciente no processo de acumulação e liberação de tensão que está na essência do gênero. Nada é gratuito, não há sobressaltos para assustar e despertar o espectador uma vez que a atmosfera é angustiantemente implacável. O tempo (uma noite) e espaço (o interior e a vizinhança da casa) por sua limitação, reforçam a natureza imediata do horror, enquanto Blake, à cada hora que passa, deixa para trás mais um tanto de sua humanidade.
Contudo, a maquiagem é decepcionante, de um jeito parecido com o que senti quando vi Nosferatu. Não seria justo comparar com a obra-prima criada por Rick Baker em Um Lobisomem Americano em Londres, mas é impossível não pensar nela imediatamente até por não haver nada muito lobo no lobisomem. Ou pensar nas versões de 1935, 1941 e até aquela de 2010, com Benício Del Toro no papel principal. Parece um gesto iconoclasta, até presunçoso, e ainda que eu compreenda uma decisão de conservar traços humanos na fera, o resultado final é visualmente desapontador, bem como a cena derradeira do clímax.
Com 25 milhões, mais do que o triplo do que custou O Homem Invisível, O Lobisomem é até um entretenimento de horror aceitável para o início do ano cinematográfico, ainda que não seja tão memorável quanto os trabalhos anteriores de Leigh Whannell.