Malu
Escrito e dirigido por Pedro Freire como uma homenagem à mãe, Malu Rocha, Malu representou o país no Festival de Sundance e é um retrato poderoso e emotivo sobre uma personagem contraditória, porém de quem é impossível desviar o olhar e não ser tragado pela sua força gravitacional (auxiliado ainda pela escolha da razão de aspecto, mais claustrofóbica do que o formato médio cinematográfico). A história é um estudo de personagem, misturado com um estudo geracional e pinceladas sutis sobre o atual estado sociopolítico brasileiro, e tem início com o retorno, ao Rio de Janeiro, de Joana (Carol Duarte), a filha da personagem-título. A recepção é calorosa, mas com botes de Malu em forma de críticas e ofensas ao ex-marido e até à própria filha por se hospedar com ele. Malu não censura sua própria fala, expressa o que pensa, bom ou ruim, gentil ou rude, é da personalidade dela a intensidade, a exasperação.
No interior da casa repleta de sonhos e personalidade, embora goteje quando chove e esteja infestada de baratas, a sensação do espectador é de uma ambivalência bipolar, o mesmo provocado pela personagem-título. Uma mulher que não hesita em expulsar a mãe de dentro de casa (“Ele é meu amigo, você não”, explica referindo-se a Tibira, causa parcial do atrito com a mãe), e que ressente quando fora internada contra sua vontade, e mesmo assim, não duvidamos que haja afeto e amor, apesar da maneira disfuncional. Lili, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha, é igualmente contraditória: uma avó religiosa e reacionária, e que crê agir com a melhor das intenções em relação à filha. A propósito, com exceção de Joana, Malu e Lili são mulheres cuja vida foi marcada pelas ações de homens (pai, marido).
Os personagens masculinos não existem materialmente na narrativa, somente através dos efeitos provocados nas personagens femininas, até porque a direção entende este ser uma obras sobre gerações de mulheres que ama umas as outras, mas que, às vezes, não aguentam estar juntas. O choque geracional, tão bem sugerido por Pedro Freire e sublimado na fala final, “Para onde estamos indo?”, é um conflito entre as expectativas frustradas. Malu acreditava que a geração de Joana continuaria a revolução iniciada a sangue e lágrimas por sua geração, a da juventude sobrevivente da ditadura militar. E isso não aconteceu. Isso também é verdade na maneira com que Lili enxerga Malu, e a incapacidade de aceitar a sua liberdade irrestrita é justificada por uma criação restrita e rigorosa. Todos projetamos sonhos e desejos não realizados nos filhos, e Malu torna isso matéria prima de dramas familiares que quase sempre acabam em ressentimento - com o tempo e o espaço para a reconstrução do carinho.
O elenco de Malu merece elogios: Carol Duarte representa um pilar de sanidade, que rompe brutalmente (nos golpes desferidos na própria cabeça) ou melancolicamente (a maneira com que a atriz contém as lágrimas dentro do carro é um dos instantes mais tocantes da narrativa). Já Juliana Carneiro da Cunha é uma matriarca afetuosa e frágil, apesar de cruel em ocasiões (dá para perceber o prazer sentido ao temperar arroz com alho a contragosto de Malu), enquanto Átila Bee aparenta ser um porto seguro, mesmo que um acontecimento no terço final tensione a relação com um aspecto oportunista. Todos enriquecem o palco para que Yara de Novaes brilhe. Com uma atuação que não está preocupada em julgar ou justificar o comportamento de Malu, apenas sê-la, Yara é um espírito livre e incontrolável. Uma mulher que é muitas em uma, capaz de gestos e presentes, capaz de brigas e ofensas, capaz de amar, odiar e reproduzir emoções em uma mesma frase.
O papel é um presente de Pedro à atriz, e a atuação de Yara, um presente ao diretor, ao enriquecer a homenagem de um filho à mãe. Que bonito é Malu.
Maria Callas (Maria)
Pablo Larraín investigou a vida da primeira dama estadunidense Jacqueline Kennedy, após o assassinato do marido, John Fitzgerald Kennedy, em Jackie, e a estada natalina da princesa Diana Spencer, depois de ter decidido terminar o casamento com Charles, em Spencer. Ao fazê-lo, Larraín não procurou desenvolver uma biografia convencional - nem exclusivamente explorar as ações daquele recorte de tempo -, seu objetivo foi de propor uma biografia do estado de espírito daquelas mulheres, fabulá-las, imaginá-las, modelá-las artisticamente. Tais biografias são enriquecedores porque não são guiadas por fatos ou acontecimentos, assim subjugando o estudo das personagens a uma linha do tempo, mas por atmosfera, humor e emoção (geralmente reprimida). Ai veio Maria Callas, (até o momento) o terceiro tomo da trilogia, que emprega o mesmo estilo para imaginar os últimos dias de vida da cantora de ópera, interpretada por Angelina Jolie.
De maneira análoga aos anteriores, uma parte significativa do que expressa o estado interno da personagem é realizado através da direção de arte do palacete onde Maria vive servida pelo fiel mordomo Ferrucio (Pierfrancesco Favino) e a governante Bruna (Alba Rohrwacher), dos figurinos, aí incluído os óculos sessentistas que projetam na personagem um atributo de diva, e do estilo obtido através da fotografia nostálgica e outonal pelo experiente Ed Lachman (de O Conde, Carol e Longe do Paraíso). Não falta glamour à Paris, que jamais parece apenas desbotada, embora haja um quê pretérito, de uma estação que está passando em favor de outra. A ideia de passagem é presente no imaginário, no desejo de Maria em retornar ao passado para o qual não pode mais voltar (tanto através de um dispositivo narrativo, quanto de flashbacks), na troca dela por Jackie Kennedy pelo bilionário Aristóteles Onassis, ou na passagem desta a outra vida (o filme inicia com a morte dela, antes de retroceder aos dias finais). A fotografia é melancólica, mas não lamuriosa, porque o dourado criado por um holofote invisível jamais permite sê-lo integralmente.
A atmosfera de Maria Callas não deve nada aos trabalhos anteriores de Larraín, mas a estrutura, sim. O roteiro de Steven Knight (o criador de Peaky Blinders) é expositivo em recorrer a um dispositivo narrativo no entrevistador imaginário vivido por Kodi Smit-McPhee (de Ataque dos Cães), e batizado de Mandrax, o sedativo consumido de maneira abusiva por Maria. Mandrax faz com que a narrativa tenha a oportunidade para inserir os abusos sofridos durante a ocupação nazista, o relacionamento com Onassis ou até o momento em que teria se encontrado com John Kennedy, de forma que não contribui à mística daquela mulher. A propósito, contradiz a personagem. Tais ruminações são, naturalmente, um fruto de um processo interno e inconsciente, revelado pelo artifício cinematográfico. Quando Maria delira as conversas com Mandrax, está pensando alto, manifestando-se artificiosamente através de um recurso cinematográfico que retira a condição de diva que a personagem pretende manter no restante do tempo. Em Jackie ou Spencer, o acesso às personagens era produzido a partir de objetos cenográficos (ex. espelhos, colar etc.) ou da fotografia, em Maria Callas é oferecido de mão beijada - que, repito, contradiz a discrição e mistério da personagem.
Que, ironicamente, permanece opaca, apesar de revelar bastante do que aconteceu ou pode ter acontecido. O passado até ajuda a compreender a relação não saudável com o peso e a forma física, mas cobre com uma justificativa elusiva o romance com Onassis (“Eu queria voltar a ser menina”, o que quer que isso signifique para o roteirista Steven Knight). A exposição fabrica ainda mais perguntas, enquanto desperdiça a atmosfera e os momentos de intimidade entre Maria, Ferrucio e Bruna (os melhores na narrativa) e os mais reveladores: a ânsia por um elogio, mesmo que seja de quem não entende nada de ópera, e a punição a Ferrucio de mover o piano de lá para cá quando se mete na vida dela, de uma maneira a criticar a intromissão masculina na vontade feminina, ilustram o que precisamos saber sobre a protagonista mais do que a fórmula narrativa decanta.
Apesar de o roteiro sabotá-la, Angelina Jolie tem, no papel da diva da ópera, um para emprestar o seu status de diva cinematográfica. Desde o primeiro minuto, a atriz está em domínio absoluto da personagem, e o fato de Maria Callas ser menos reconhecível popularmente do que foram Jackie Kennedy ou a Princesa Diana confere liberdade à experimentação e encenação. Angelina é parte ela mesma e parte Maria Callas, e essas duas mulheres se encontram no retrato de quem literalmente vive e morre pela ópera. Há tragédia, beleza e candura neste melodrama de Pablo Larraín, um ou dois degraus abaixo dos trabalhos anteriores.
2073
Acredito que sejamos zumbis, uma terminologia empregada pelo diretor Asif Kapadia neste híbrido entre documentário e ficção 2073. A revolução industrial transformou a sociedade em zumbi, ao desumanizá-la em somente um item da linha de produção, e a revolução digital tem realizado o mesmo, expandindo a desumanização para o sentir e pensar criticamente. O que justifica a erosão da democracia pela manipulação do voto com políticas de desinformação que criam uma realidade virtual dissociada da fática e material. Pior, as pessoas se tornaram ainda mais insensíveis do que eram no império do individualismo: as catástrofes ambientais e humanas causadas por ódio e guerra (o assassinato de muçulmanos na Índia, o massacre palestino por Israel etc.) emocionam quando convém e durante um intervalo de tempo até um vídeo fofinho de um gatinho pipocar na tela do celular. É tudo efêmero, em um mundo em transformação em favor dos “monarcas” da tecnologia (Bezos, Musk, Zuckerberg, Thiel etc.), e cada vez pior e dolorido para as camadas mais pobres e miseráveis.
Asif Kapadia sobrevoa esse ‘admirável’ mundo novo, com câmeras de vigilância saídas de 1984, da ascensão de governos de extrema direita que fragmentam a sociedade pelo meio, do avanço dos sistemas de informação e da inteligência artificial generativa, que tem tornado tudo em bits, bytes e algoritmos, transformando o material e imaterial (a nossa alma ou espírito) em linguagem a ser codificada e decodificada. Para um ansioso igual a mim, o cenário apocalíptico de 2073 é pavoroso, após o evento (que pode ser, na realidade, qualquer um) ter transformado o mundo de amanhã… somente no mundo de hoje. O que mais gosto no experimento do diretor é que o futuro é derivado e parece já ser presente. A fotografia alaranjada revela um mundo consumido por incêndios, ao passo que os lixões a céu aberto onde as pessoas procuram comida e os túneis onde se refugiam das forças autoritárias são extrapolações apenas em termos de escala.
Uma mulher muda, interpretada por Samantha Morton, atravessa esse mundo com o livro de Malcolm X a tiracolo, recordando os eventos passados que transformaram de vez o mundo. O futuro é onde está inscrita a jornada dela, mas é no passado que está nossa como espectador. É onde o conto de alerta de Asif Kapadia não se diferencia da maneira alarmista e sensacionalista da adotada por governos extremistas, em conluio com as empresas de tecnologia. Eu, pessoalmente, acredito que a linguagem tal como adotada por Asif mais atrapalha do que ajuda. É importante termos consciência, mas como, bem, aí está a chave: o alarmismo narrativo exacerbado só acentua o desespero e o escapismo, em vez de inspirar a mudança. Pintar um cenário do mundo das trevas, embora seja uma realidade que se aproxima a passos largos, fez-me fechar-me dentro de mim mesmo. Como um indivíduo pode fazer a diferença contra tamanho poder (de quem o detém na humanidade ou mesmo da natureza)?
O filme mostra um cenário calamitoso - e de uma maneira açodada e condensada -, e só oferece respostas óbvias: o jornalismo como meio de responsabilizar os poderosos, a indispensabilidade da regulamentação tecnológica antes de que estas se assenhorem das Nações, a manifestação coletiva da sociedade contra o clube do bolinha que tem as rédeas do mundo porque controla as informações etc. Na teoria, tudo é muito bonito e inspirador; na prática, não é bem assim; e não adianta, fomentar a mudança através do medo não é diferente em forma do que tomar a democracia desinformando pelo medo. Eu considero a mesmíssima coisa: manipular a ansiedade individual e nos zumbificar, não nos conscientizar. E não importa qual a intenção em fazê-lo, um zumbi não pensa criticamente, e Asif Kapadia, com as melhores intenções, quis fazer um zumbi de mim e eu não aceito.
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