No Céu da Pátria Nesse Instante
Os premiados O Ano Novo que Nunca Veio, Afogamento Seco e No Other Land, no 6º dia da 48ª Mostra
O Ano Novo que Nunca Veio (Anul Nou care n-a fost)
Eu sempre fico impressionado como a Romênia, apesar de questões socioeconômicas sensíveis, permanece um cinema atraente e envolvente, não limitado àqueles cineastas que posicionaram o país dentro do mapa do cinema mundial: os queridinhos da crítica Cristian Mungiu, Radu Jude, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou Radu Muntean. Um bom exemplo é este O Ano Novo que Nunca Veio, que é a estreia em longas-metragens do diretor e roteirista Bogdan Mureşanu. Premiado na Mostra Horizontes do Festival de Veneza deste ano, e vencedor do Prêmio Fipresci da crítica, Bogdan é articulado na costura de múltiplas histórias paralelas havidas no país à beira da Revolução de Natal, quando o ditador socialista Nicolae Ceaușescu foi deposto e sumariamente executado.
A reação popular foi uma resposta ao massacre de Timișoara, comentado na narrativa dentro de programas jornalísticos que desinformavam favoravelmente ao regime (hum onde já vi isso antes?). É uma época na qual até os apoiadores do ditador já aparentam estar desiludidos, à espera do julgamento popular, embora conservem uma fachada de normalidade: as gravações de um programa televisivo para ser veiculado no Ano Novo ou a organização de manifestações (não espontâneas) de apoio à ditadura surgem para mascarar os planos de demolição de um bairro ou, mesmo, a tortura de estudantes que protestam contra o regime. É um roteiro ambicioso e habilmente desenvolvido com os seus múltiplos personagens representando as faces da opressão e revolução.
Gosto da forma com que Bogdan não distribui igualmente o tempo para cada história, mas permite que cada história tenha o tempo que precisa ter, sem sentir a urgência de ir deste para aquele personagem como uma espécie de protocolo. Adrian Văncică tem um papel central, porque é o representante da pessoa média na iminência da ebulição social; enquanto isso, a atriz não aliada ao regime Nicoleta Hâncu tem o dilema de ter sido a escolhida para ser a estrela da propaganda de ano novo, um papel que reluta em aceitar, apesar de saber quais as consequências da recusa. Essas subtramas expandem em maior tempo de tela do que as protagonizadas por Emilia Dobrin, uma mulher que resiste em abandonar a casa onde viveu a sua vida, a despeito da súplica insistente do filho e membro do partido, interpretado por Iulian Postelnicu, ou por Mihai Călin, um outro que é também integrante do partido, e cujo filho, vivido por Andrei Miercure, é um dos líderes dos protestos estudantis.
Cada decisão tomada pelos personagens é informada pela obediência e pelo temor do regime, às vezes as duas coisas, e cada subtrama é apenas uma gota dentro do oceano, mas uma gota bastante para abalar as estruturas do regime totalitário. Entretanto, na tradição do cinema romeno, que é capaz de acrescentar humor (frequentemente ácido) a histórias dramáticas, O Ano Novo que Nunca Veio atenua o evento histórico prestes a ser deflagrado, proporcionando quebras bem humoradas (ex. o suicídio interrompido pelo corte do gás de cozinha ou a relação entre pai e filho, após este ‘dedurá-lo’ numa carta para Papai Noel). Esses momentos, longe de enfraquecerem o conjunto da obra, revelam a confiança de Bogdan na narrativa criada, recompensando o espectador com irreverência aliada à sua desenvoltura.
Assim, surge mais um nome para adicionar à lista de diretores romenos que devemos prestar atenção.
No Céu da Pátria nesse Instante
É somente natural que os eventos sociais e políticos informem o trabalho de diretores de ficção e documentário, estes com a missão nobre de transformar o audiovisual num instrumento de registro da história e memória brasileira. Assim como o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff resultou em obras documentais, umas boas, e outras nem tanto, é esperado que a disputa presidencial acirrada entre Lula e Bolsonaro e os eventos de 8 de janeiro de 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes, servirão de matéria prima para que a expressão da perspectiva de diretores, como é a hipótese de No Céu da Pátria nesse Instante.
Se Petra Costa investigou a ascensão do evangelismo neopentecostal e sua influência na eleição de Jair Bolsonaro, o que a obrigou a tatear os eventos acima relacionados, a diretora Sandra Kogut é bastante direta na proposta de registrar meses antes do pleito de 2018, através do ponto de vista de um conjunto bastante limitado de personagens, e que representam lados opostos de uma mesma disputa. Entretanto, não há informação nem acontecimento que não seja do conhecimento de quem acompanhou a realidade e disputa eleitoral nos últimos anos, e o mínimo esforço de compreender o ‘outro lado’ - considerando o óbvio posicionamento político da diretora. Os eleitores bolsonaristas, embora com uma bíblia de desinformação sob o braço, são percebidos como se fossem alienígenas. Uma família frequenta culto religioso que alimenta nos fiéis o sentimento que estão em guerra do bem contra o mal, da liberdade contra o “comunismo”, embora não haja intenção de estabelecer uma comunicação horizontal. A sensação é que, atrás da tela do zoom e longe da câmera, Sandra protege-se ao questionar aqueles sujeitos e, indiretamente, torná-los objeto de humor.
Enquanto os bolsonaristas são tratados como curiosidades, os petistas são enxergados com maior intimidade. Sandra registra o ex-candidato ao governo do Rio de Janeiro, o Marcelo Freixo e a sua esposa, dentro de seu lar, com uma câmera que registra o choro de agonia e ansiedade dela caso a eleição tenha um resultado diferente do esperado. A propósito, não faço ideia do que Sandra pretendia alcançar com o seu acesso a Freixo - uma vez que, como personagem, ele é político, e agirá como tal, não como um cidadão igual aos demais personagens. A sua esposa não é muito diferente, e não há momento que seja em que não apareça com uma sensibilidade superlativa que me parece apenas a reação ao efeito da presença da câmera. Já enquanto acompanha as ‘pessoas médias’ eleitoras ou partidárias do PT, Sandra tem uma abordagem diferente, muito por causa da proximidade em detrimento do distanciamento dos bolsonaristas que se filmaram.
Não quero afirmar que Sandra deveria ter sido imparcial, longe de mim afirmar uma baboseira dessa em uma obra autoral, e nem quero determinar como deveria abordar seu tema e seus personagens, apenas que ao fazê-lo do jeito como fez, provocou uma sensação amarga de quem acentua, ainda mais, a separação abismal que há entre as duas partes. Seus esforços didáticos em documentar a segurança e confiabilidade das urnas eletrônicas funcionam bem melhor, embora aparentem ser só um apêndice em um todo que parece estar em toda parte e não proporcionar nenhum olhar nem ponto de vista original ou inédito. O resultado de No Céu da Pátria nesse Instante não condiz com a proposta inicial, e apesar de reler o passado recente, não proporciona nenhuma alternativa para mudar o cenário em que estamos.
Enquanto continuarmos assim, evitando a oportunidade do diálogo capaz de reverter a alienação iniciada em junho de 2013, podemos nos preparar para documentários ou ficções não somente sobre o 8 de janeiro ou as eleições de 2022, mas eventos futuros e imprevisíveis em terra brasileira.
Afogamento Seco (Sesės)
Reconheço que não esperava os locais emocionais que me levou este Afogamento Seco, o vencedor do prêmio de melhor direção e atuação no Festival de Locarno deste ano. A coprodução Letônia e Lituânea tem seu início com a viagem das irmãs Ernesta e Juste, junto dos respectivos cônjuges e filhos, para a casa de campo herdada da família, a fim de comemorar o aniversário de Tomas e a vitória de Lukas em um campeonato de luta. Com um estilo bastante austero e contido, o diretor Laurynas Bareisa exibe as fissuras familiares, as frustrações dos adultos (e das crianças), a maneira com que lidam com os eventos que acontecem durante a viagem.
Na base, um sentimento de competitividade entre os respectivos cônjuges: Tomas tem uma situação financeira confortável, embora não haja estabilidade intimamente ou no relacionamento conjugal. Lukas é o oposto, e muito é expresso, sem ser verbalizado. O corpo de Lukas é a versão esculpida e idealizada que todo homem sonha em encontrar ao encarar o espelho, e Tomas o inveja silenciosamente, do mesmo modo que acontece uma disputa observável mas jamais anunciada pela condição de macho alfa do início ao fim: de quem chega primeiro na casa de campo às trocas de sopapos, até ao evento que rompe o orgulho masculino com uma clareza solar, a direção é crítica à masculinidade que escanteia e marginaliza a filha de Tomas (enquanto os homens, e o filho de Lukas, brincam no lago, ela parece apagada da imagem).
Há, até nas personagens femininas, que não demonstram a mesma competitividade, e sim sororidade, uma tendência a valorizar os homens em detrimento delas próprias ou de seus sentimentos. A viagem é para celebrar o aniversário e a vitória dos homens, e se não fosse o evento que mencionei antes, na forma narrativa de súplica por atenção, Afogamento Seco seria sobre eles, não sobre elas. O melhor é que não há, na narrativa, a crítica incisiva a isso ou aquilo, mas o reconhecimento de onde provém a frustração de cada personagem: a síndrome de pânico apenas revelada posteriormente ou, mesmo, a frustração retratada literal e ludicamente enquanto uma criança arremessa ao chão os seus brinquedos (cujos cacos serão recolhidos posteriormente no trecho emocional do filme).
O melhor é que não falta emoção à narrativa, mas retratada de um jeito leste europeu de cinema. A forma precede a literalidade. Laurynas Bareisa fixa a câmera, até abaixo da altura do olhar dos personagens, para observar o seu comportamento, alimentando a expectativa de que um evento decisivo ocorrerá (embora quase nunca isso ocorra). O voyeurismo narrativo é atraentemente singelo, a câmera é mantida estática ou, então, aproxima-se de um jeito paciente em direção aos personagens. Isso fabrica ansiedade e tensão, e o ato de observar Tomas e Lukas comerem calados os petiscos dispostos na mesa do lado de fora me causou uma apreensão que muitos suspenses não conseguem fazer.
Estruturalmente, Afogamento Seco subverte a forma austera, rearranjando os pedaços da história, proporcionando informações futuras para que revisitemos os eventos no passado e criando alternativas no imaginário do espectador, que pode tentar deduzir como ou por que aconteceu isso com esse ou aquele personagem. Não sei se esta é a melhor maneira de encarar a estrutura da narrativa, mas tampouco me incomodou a ponto de rejeitar Afogamento Seco, cuja maturidade compensa a falta de hombridade de seus personagens masculinos.
No Other Land
Antes mesmo do ataque terrorista do Hamas e da retaliação de Israel, que perdura por mais de um ano, em mais uma escalada da ocupação da Palestina iniciada em 1967, no documentário No Other Land assistimos à maneira sistemática com que age o Estado de Israel contra a Palestina, em uma narrativa revoltante e cuja qualidade jornalística é rivalizada somente pelo aspecto humanitário e pela comprovação de que é possível a coexistência pacífica entre os povos.
O documentário trata da situação da aldeia de Masafer Yatta, cuja propriedade, após um imbróglio de 22 anos, foi atribuída ao exército israelense, em obediência à decisão da Suprema Corte de Israel. Esta é só uma dentre tantas violências, a de que um povo palestino é subordinado às decisões de um tribunal israelense, que se somam a tantas mais dentro do tecido da narrativa (ex. a proibição de circulação de automóveis com a placa palestina em determinadas regiões). Contudo , além do fato de o povo palestino ocupar a região pelo menos desde o século XIX, há mais de 1.000 famílias ocupando a aldeia há décadas. Basel Adra, um ativista palestino, tem documentado o apagamento diário daquela comunidade palestina, na expectativa da chegada de tropas do exército israelense e de escavadeiras que demolirão as suas residências, e os empurrarão ainda mais à indignidade: seja morar no interior de cavernas, seja mudar-se para a populosa cidade, um gueto à céu aberto.
Provoca espanto como o povo judeu, que sobreviveu aos horrores do Holocausto, pode provocar, através de ações imperialistas estatais, o Holocausto da população palestina, e o documentário realiza um trabalho pertinente da indiferença israelense à questão e humanidade do povo vizinho. Enquanto as imagens amadoristicamente retratadas por Basel documentam a chegada do exército, e a truculência, com um recurso à violência, enquanto empurram os habitantes ou ignoram as súplicas desesperadas de mulheres e crianças que perdem o pouco que possuem, os telejornais israelenses destacam o fato de que o exército está seguindo só uma decisão judicial. A decisão cuja ilegitimidade, e respeitada a história, não é diferente da ilegitimidade dos tribunais alemães quando marginalizaram os judeus aos becos e se apropriaram, ilegalmente, do que possuíam. O documentário sintetiza, visualmente, essa contradição, em uma narrativa que é de horror real: a imagem dos blindados à distância e de soldados segurando os seus fuzis contra uma população desarmada provocam apreensão em quem assiste, concretizam a ameaça à ‘paz’ (que paz?) ou estabilidade mínima provisoriamente reestabelecida no documentário.
E a forma com que a direção a oito mãos de Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham documenta a ação é admirável. Basel e o jornalista israelense Yuval - já falo dele - colocam-se na linha de frente, enquanto os demais estão na retaguarda, em um formato remissivo de um jornalismo de guerra. O que é a estabilidade (visual) rapidamente é perdida com o deflagrar da ação israelense, e o que era discernível se torna indiscernível, caótico, um borrão de imagens evocativo dos entulhos deixados como resultado da demolição (e desumanização). No ‘melhor’ dos cenários, a imagem ainda é materialmente compreensível; no pior, a imagem é relegada, em prol da busca por sobrevivência, e se Basel ou Yuval possuem uma certa imunidade é apenas porque se tornaram conhecidos internacionalmente (o que não impede uma ameaça aberta de um israelense que compartilha a imagem de Yuval na internet).
E por mais que o destino de Masafer Yatta já pareça sacramentado - à luz dos eventos contemporâneos, sobretudo -, a amizade entre Basel e Yuval é sugestiva de que, ainda, pode existir a esperança de uma convivência pacífica. Por mais que Basel não ignore o fato de que Yuval é livre para ir e vir, e existe um misto de ressentimento e indignação a cada oportunidade que menciona isso, a ligação entre os jovens, além das diferenças, é a força em cima da qual se apoia o documentário. Não é uma relação só conveniente, mas criada no reconhecimento mútuo de que atuam pela justiça, dignidade e paz, pois esta só frutificará na região não quando os grupos terroristas forem exterminados pela vontade de deus (em minúsculo), como costuma vociferar Benjamin Netanyahu, e sim quando os israelenses começarem a enxergar, na situação palestina de hoje, a mesma situação desumana e inaceitável de seus antepassados.
No Other Land venceu o prêmio de melhor documentário e de público do Panorama do Festival de Berlim, e o prêmio do público nos festivais CPH:DOX, no Visions du Réel e no IndieLisboa, e seria um dos favoritos ao Oscar da categoria (entretanto, sabemos muito bem que a Academia se acovardaria em premiar filmes que apoiassem a causa da Palestina).
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