O Brutalista
O alemão A Última Sinfonia, o nacional Serra das Almas e a comédia Saturday Night, nos 9º e 10º dias da 48ª Mostra
A Última Sinfonia (Dying)
Todos os personagens de A Última Sinfonia estão definhando. Concreta, artística e até refletida no estilo de vida niilista, nenhum dos personagens do filme escrito e dirigido por Matthias Glasner vive à margem da morte. A matriarca Lissy lida com a demência do marido, Gerd, antes de ele ser internado em uma clínica de repouso. O primogênito Tom é o regente da sinfonia não ironicamente intitulada Dying, composta pelo melhor amigo, cuja depressão profunda amadureceu em ideação suicida. Finalmente, a caçula e alcoólatra Ellen vive sua vida como se não houvesse amanhã, envolvendo-se com um homem casado em um romance que, sabemos, não terá o desfecho idealizado.
Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Berlim, A Última Sinfonia é uma espécie de dramalhão, porém um que rejeita os mecanismos comumente associados ao gênero, em prol de uma abordagem racional ou teutônica, digamos assim, dos traumas que martirizam os personagens. Contudo, tenho senões com filmes que parecem estar envergonhados do gênero escolhido - o que, em matéria de drama, é rejeitar a lágrima, o choro e a emoção sensível -, como se fossem pessoas envergonhadas de quem são ou de onde vieram. O que pode ser atribuído à forma com que o alemão lida com a vida, a morte e os dramas e traumas familiares (a partir dos personagens representados), pode também se assemelhar com a tomada de uma posição de superioridade em detrimento do gênero. A camada de gelo em cima da qual está A Última Sinfonia é fina o suficiente para poder rachar a qualquer momento, e o que seria um drama eficiente transformar-se em um falatório interminável de adultos que parecem superiores a nós somente por não cederem às emoções.
E é um falatório, ainda maior porque o filme é incapaz de justificar as suas 3 horas de duração, apesar de contar com personagens interessantes, na maior parte do tempo, e de relações compreensíveis intelectualmente, mas não emocionalmente. A esposa que está aliviada com a internação do marido, ou que revela ao filho, com frieza calculada, não o amar, quando esperávamos o contrário, rompem com a idealização romântica de relações familiares. Lissy despreza tal sentimentalismo e até surpreende-se consigo ao fazê-lo, um aspecto realçado pela atuação de Corinna Harfouch que insensibiliza cada palavra que pronuncia. Já Tom (Lars Eidinger) absorve aquela verdade dura e chocante mas não inesperada, através de silêncios que envelopam as palavras. Pensado de forma fria, o momento é poderoso. No entanto, quando encenado e transportado às imagens, consiste apenas em palavras vazias, incapazes até mesmo de chocar.
A Última Sinfonia é todo povoado de momentos solenes, no qual os personagens estão conscientes do pragmatismo de seus relacionamentos (a namorada de Tom sabe que o maestro não é o amor de sua vida, por exemplo), apesar de suplicarem silenciosamente por relações idealizadas inexistentes. Aqueles que fogem à regra, casos do compositor Bernard e de Ellen, são enxergados sob a ótica do desespero e vício, quando é o fato do acúmulo de sentimentos, num mundo insensível, que os fazem ser quem são. É irônico que o capítulo de Ellen - o filme é recortado pelos personagens da família - seja o mais irritante, ao traduzir sentimentos em excessos, niilismo, desespero. Se for refletir com o mesmo pragmatismo injetado por Matthias Glasner, posso concluir que o prêmio de melhor roteiro seja justo. As ideias de A Última Sinfonia, a relação ambivalente com os sentimentos e as verdades desconcertantes parecem melhores textualmente, em vez de cinematograficamente.
Serra das Almas
É até esotérico escrever que um dos aspectos que mais me incomodaram em Serra das Almas foi a complexidade de seus personagens, e deve ser ainda mais esotérico para o leitor ler isso. Mas existe razão na minha loucura acho. Serra das Almas tem início com a fuga de Geslano (Ravel Andrade) e Charles (David Santos) rumo a este fim do mundo do título. Um acontecimento que perturba, cinematográfica e narrativamente, a paz de Vera (Mari Oliveira) e do público. O diretor Lírio Ferreira alterna entre o idílio natural e os seus sons tranquilizadores, em planos que apenas assistem à Vera banhar no rio, e a fuga, a gritaria, o rock ‘n roll desestabilizador e a montagem acelerada e retalhada. É um início revelador de uma história mais ampla do que só um roubo que deu errado, é também uma oportunidade para compreendermos as dinâmicas entre os personagens e os ressentimentos oriundos do passado.
E o passado invade o presente em Serra das Almas como uma ferramenta narrativa com a intenção de ilustrar e explicar o que houve no passado, e justificar o comportamento e as ações dos personagens no presente. Por exemplo, o refúgio escolhido por Geslano não é fortuito, mas a casa do amigo de juventude vivido por Jorge Neto; já a razão pela qual a repórter Samantha (Júlia Stocker) e a estagiária Luiza (Pally Siqueira) terem sido feitas reféns é uma investigação jornalística que as colocou na rota dos criminosos. As idas e vindas ao passado preenchem lacunas no ontem, enquanto quebram o ritmo das ações presentes. Serra das Almas fica entre o que foi, e o que é, análogo ao “purgatório” onde estão os personagens, antes de decidirem os passos seguintes.
Lírio é afortunado no agora: a fervura dos ânimos e humores antes de os personagens entrarem em ebulição, o suspense sobre a forma e o quando isso acontecerá, a relação paralela entre o trio feminino e o quarteto masculino. Este, em razão da ganância e da fragilidade do gênero, ou de uma combinação de ambos, é autodestrutivo, enquanto o trio de personagens femininas, apesar das arestas mais ásperas, encontra o apoio para superar a situação a partir da sororidade. Aí entra uma pitada de Quentin Tarantino, na violência brutal que pega o espectador de surpresa (ex. lembre como Vincent Vega era surpreendido em Pulp Fiction?). O que poderia ser um filme de gênero enfraquece à medida em que o roteiro complica os personagens, quando retorna ao passado. E é o ponto onde retorno ao início.
Geslano não é melhor porque os flashbacks revelam um homem ambicioso, cujo sonho era de ser deputado estadunidense antes de se tornar um lacaio de senador, ou porque lamenta a série de acontecimentos desenrolados. Não é a abundância das informações sobre um personagem que o enriquece - deveria ter esclarecido isso no início, mas um click bait crítico -, como não é ter sobrevivido a uma violência e internalizado o trauma que tornam Vera melhor; as informações do ontem (os flashes com o fofão de carnaval, por ex.) constroem uma camada de motivação, onde já havia motivação suficiente para suas ações: a quebra da paz e do silêncio por uma força externa. A cada vez que Serra das Almas introduzia um flashback, uma parte do meu prazer com o filme se extinguia, porque parecia que o thriller não confiava no que tinha de melhor: o seu elenco, com o destaque a Ravel Andrade, a Mari de Oliveira, uma prova de que criar bons personagens não tem relação com a quantidade de falas, mas com a presença em cena, e Vertin Moura, o ‘coringa’ daquele grupo.
Serra das Almas se resolveria muitíssimo bem apenas com o agora. O passado somente lhe traz excessos.
Saturday Night – A Noite que Mudou a Comédia (Saturday Night)
Às 23:30, de 11 de outubro de 1975, aconteceu o primeiro episódio do Saturday Night Live!, concebido por Lorne Michaels, criado por uma sala de roteiristas efervescente na era da contracultura e protagonizado por recém descobertos nomes da comédia e stand-up estadunidense (Chevy Chase, de Férias Frustradas, Dan Aykroyd, de Os Caça-Fantasmas, o saudoso John Belushi, e dentre tantos mais). Hoje na 50ª temporada, na NBC, nós sequer poderíamos imaginar que a série esteve prestes a não acontecer, vez que concebida às sombras do queridinho da América, Johnny Carson, enxergada com desconfiança pelos executivos da emissora (representados pelo imenso Willem Dafoe) e aparentemente ingovernável pelo inexperiente criador Lorne (Gabriel LaBelle). Este trabalho dirigido por Jason Reitman não pretende documentar os bastidores do início com a mesma fidelidade de caracterização de Cory Michael Smith e Matt Wood, mas ficcionalizar os eventos daquela noite, e faz isso de modo irresistivelmente envolvente e irreverente.
É difícil não cair de amores pelas decisões formais de Saturday Night, e que atiram de paraquedas o espectador dentro do caos, iminência e incertezas do episódio. Muito é devido à direção de fotografia de Eric Steelberg, que adota os planos sequência - tais como aquele de Magnólia ou RoboCop, em que a câmera é basicamente conduzida pela equipe e artistas, acompanhando-os enquanto correm para lá e para cá - como a forma de expressar a apreensão a 90 minutos da Central de Comando - de que Lorne não tem a chave nem a gerência - decidir entre reexibir um episódio gravado de Johnny Carson ou o Saturday Night, ao vivo. Os planos sequência podem até soar contraditórios, pois coreografam à perfeição o que deveria ser, na verdade, espontâneo e caótico. Mas, ei, é difícil para eu resistir à beleza da encenação, que emprega os “chicotes” (o movimento de câmera à lá Whiplash, em que o operador de câmera movimenta com tal velocidade que deixa um borrão na transição), e planos claustrofóbicos para criar a representação do tumulto e das inseguranças de Lorne Michaels (enquanto ainda revisita a nostalgia de uma época, associada à direção de arte, figurinos e maquiagem).
Diferentemente da fotografia, a trilha sonora composta por Jon Batiste (que interpreta o líder da banda, Billy Preston) é bastante coerente com a proposta. E não há meio que não o hot jazz para expressar o caráter de improviso em frente às câmeras, como ainda atrás delas, com o cenário sendo concluído e montado a olhos vistos minutos antes do ‘Ao vivo!’. O improviso é um sinônimo de dinamismo para Saturday Night com diálogos sobrepostos e interrompidos, personagens que pipocam de todos os lados com desejos e expectativas (ex. o criador dos Muppets, Jim Henson, cobrando as páginas de roteiro que ainda não tem). Muito está acontecendo em todas as partes da narrativa, fazendo o trabalho de Jason Reitman ser de um maestro de uma orquestra de artistas inovadores e malucos. Jason contorna o óbvio entrave do projeto - o fato de sabermos o resultado final - com um estilo ainda mais indutor de ansiedade do que Obrigado por Fumar e até Juno.
Contudo, é inegável que muito do prazer em assistir a Saturday Night está em perceber a caracterização de ícones da comédia. E embora seja um prazer maior para o público estadunidense do que para o brasileiro, que pode desconhecer metade daqueles nomes da mesma maneira que os estadunidenses desconheceriam os intérpretes da Escolinha do Professor Raimundo ou da Praça é Nossa!, há muitos para prestar atenção: Chevy e Dan, ou Billy Crystal e Andy Kaufman - que é mais conhecido graças à atuação de Jim Carrey na biografia O Mundo de Andy -, e John Belushi. A interpretação de Matt Wood como o ‘Marlon Brando da comédia’, um sujeito incontornável, imprevisível, mas dono de um humor refinado e intenso é um dos ápices do projeto, e mesmo que imagine ser impossível alguém reproduzir John Belushi por quem foi, Matt chega muito perto de o fazer. E o mesmo vale para o filme: se é impossível a cópia fiel daquela fatídica noite, Saturday Night chega bem pertinho de evocar e reproduzir a ansiedade à sua véspera.
O Brutalista (The Brutalist)
O terceiro longa-metragem de Brady Corbet, após A Infância de um Líder e Vox Lux, e premiado no Festival de Veneza com o prêmio de Melhor Direção, o que o coloca em uma posição vantajosa na temporada de premiações que avizinha, O Brutalista é meio que ‘muito barulho por nada’. Apesar de uma pretensão compatível com a duração de 215 minutos, é um estudo de personagem e de nação bastante ordinário nos conflitos, desdobramentos e antagonismos colocados diante do fictício arquiteto judeu húngaro László Tóth, que imigrou em direção aos Estados Unidos em 1947 após sobreviver à 2ª Guerra Mundial. Ele encontra ocupação na loja de móveis planejados do primo, Attila (Alessandro Nivola), até uma cadeia de eventos colocá-lo na folha de pagamento do milionário Lee Van Buren (Guy Pearce), que o contrata para criar uma maravilha da arquitetura brutalista em homenagem à sua falecida mãe.
No interior de uma residência WASP (o termo dado à elite protestante estadunidense localizada na região da Pensilvânia), László encontra a oportunidade para desenvolver sua visão artística, apesar de enfrentar ressalvas quanto a ela, e de trazer para o país a esposa (Felicity Jones) e a sobrinha (Raffey Cassidy). Um dos aspectos marcantes de O Brutalista está nas conversas entre o mecenas Lee Van Buren, representante do capital, e Tóth, representante da arte. Apesar de ambos interpretarem estereótipos - um ricaço apaixonado pela grandiosidade da obra patrocinada e um artista boêmio e dependente químico, após um acidente no nariz que o obrigou a utilizar opioides -, Guy Pearce e Adrien Brody adicionam dimensões àqueles personagens. Guy torna Lee num sujeito contraditório, para quem a reputação precede o capital. Quando convida seus pares a caminhar, no frio e terreno irregular, Lee dá uma demonstração narcisista de quem é e de como quer ser enxergado, como o rei que os demais seguem. Ele aprecia a arte arquitetônica não porque a entende pelo que representa, mas pelo remuneração que trará ao patrimônio imaterial da família - neste sentido, o filho, interpretado por Joe Alwyn, é mais pragmático porque enxerga as coisas pelo que é: dinheiro.
Já Adrien Brody transforma Tóth não em um homem digno de compaixão, como fez com Wladyslaw Szpilman em O Pianista, mas num sujeito igualmente contraditório, que atrai a nossa simpatia apenas pela posição desfavorável onde está naquele meio (“Nós o toleramos”, explica o filho, enquanto projeta a cintura inferior como a disputa de masculinidades). A dependência química, a maneira com que trata a esposa ou até como recebe as ofensas e humilhações são conciliadas com o talento dele, e a questão primária de O Brutalista é perceber o concreto metafórico sobre o qual o personagem está estabelecido, a sua esposa, e o papel determinante dela nos eventos derradeiros e determinantes na narrativa. Apesar da doença, a consequência da inanição em campo de concentração, fragilizá-la, Erzsébet mobiliza a atenção daqueles ao redor, mas sem o autoflagelo de Tóth. Ainda assim, O Brutalista é um tanto frustrante por não levar o espectador à obra no centro da narrativa - literalmente! -, e somente refletir em torno dela como símbolo da crise entre capital e arte, ou quem é o ‘dono’ da obra de arte: se é quem cria, mas está subordinado às restrições de um meio movido à dinheiro, ou se é quem financia e exerceu seu poder e dominação.
Uma dominação literal, mesmo que isso não pareça coerente com o personagem então criado. Apesar de sólido e consistente por cerca de 3 horas, o desfecho frustrou-me na incoerência de um personagem a partir da viagem à Itália, e no posterior apagamento de Tóth, em favor de Erzsébet, deixando em suspensão interrogações que, em meu ver, não deveriam ter sido deixadas (mas que não discuto para evitar spoilers). A propósito, a explicação contida no epílogo sobre a edificação é uma espécie de faca de dois gumes: ainda que o espectador, de um modo imediato, possa apreciar a poesia contida em deduzir o trauma em arquitetura, é um tanto frustrante que obras de arte precisem ser explicadas a partir da intenção do artista, e não a maneira com que apreendemos a obra.
Mas, é isso, O Brutalista é muito barulho por nada.
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