O Legado de Pandora (Pandoras Vermächtnis)
Quando pensamos no cinema alemão do início do século passado, pensamos em Fritz Lang, F. W. Murnau ou Ernst Lubitsch, pensamos no expressionismo alemão, mas não é incomum ignorarmos o nome do austríaco G. W. Pabst ou somente mencionar o seu clássico, A Caixa de Pandora. É tal caixa que a diretora, roteirista e montadora Angela Christlieb abriu quando conheceu Daniel Pabst, o neto de G. W., que abriu um acervo pessoal e familiar de um diretor que é redescoberto não em uma biografia típica, mas numa obra que é o resultado de uma paleontóloga cinematográfica reunindo as peças dispostas (cartas, imagens, depoimentos, excertos do filmes etc.) para montar o fóssil do cineasta e permitir sua redescoberta: “É muito simbólico e metafórico que Ben Pabst, um paleontólogo, estava organizando os ossos de um dinossauro, para mim é como montar a história como um quebra-cabeças”, comentou a diretora Angela Christlieb durante nossa entrevista no Café Fellini.
“Eu não o conhecia mais do que você, no começo. Ele foi um dos mais importantes diretores da era do cinema mudo e fez A Caixa de Pandora, e era isso que eu sabia”, confidenciou-me a diretora antes de embarcar em um projeto pela obra de G. W. Pabst e pelo material e arquivo mantido pela família. “Eu descobri tudo. Não quis fazer uma biografia. Meus filmes são mais experimentais, eu os chamo de montagem associativa”.
Angela é coerente com a discursividade de Pabst, um diretor contraditório, para dizer o mínimo: enquanto as suas obras celebravam a mulher em papéis bastante à frente de seu tempo, Pabst ‘escondia’ do mundo a esposa, Trude, impedindo-a de atuar em seus filmes. Profissionalmente, Pabst e Trude parecem-me Alfred e Alma Hitchcock, tendo a esposa um papel de bastidor em propor sugestões aos roteiros do diretor. E Trude é trazida ao primeiro plano, com a narração organizada a partir das epístolas escritas ao marido, devolvendo-a à posição de poder que Pabst havia tirado dela. O depoimento e o ofício dos netos informam a ambição estilística de Angela: fora o paleontólogo Ben - cuja relação é a mesma da diretora, dentro de um nível criativo - , a ativista ambiental Marion, ao discutir o acasalamento de borboletas e a iniciativa da fêmea em atrair os machos, remete ao erotismo que havia na obra de Pabst.
“Eu não acho que Trude seja a caixa de Pandora [de Pabst], mas é a chave que abre essa caixa de Pandora. Ela tinha um ‘terceiro olho’, praticamente um dom premonitório. Eu descobri um mosaico familiar, o drama herdado por gerações. Ela não estava somente supervisionando e o auxiliando nos roteiros, mas também trabalhava como figurinista”. A diretora compartilhou uma história ausente no documentário de como G. W. Pabst, depois de uma estada em Nova York e de volta à Europa, onde estava procurando atores para a sua trupe teatral, acabou levado à prisão na França, durante a 1ª Guerra Mundial. Durante o cárcere, ele dirigiu um grupo teatral e realizou amizade com um homem que lhe mostrou a foto de sua irmã. Era Trude, e ali, Pabst teria afirmado que se casaria com ela.
Ao questioná-la a respeito do empoderamento e da restituição do papel histórico de Trude levado à efeito através do resgate das cartas e posições, Angela me respondeu: “Perguntam-me se este é um filme feminista. E eu respondo ‘Não!’. É um filme contado por uma perspectiva feminina. Eu não quero afirma ser um filme feminista, pois não foi a minha intenção, eu só mostrei as coisas como aconteceram. Claro, [Pabst] oprimiu [Trude], mas não esqueça que era uma época diferente, há uma centena de anos, e não podemos comparar esta opressão feminina esta com a dos dias atuais. Ela não era Alma Mahler-Werfel, em referência à compositora e pintora austríaca. Ela estava ao lado do marido, auxiliando-o, sofrendo com a sua opressão, mas também aproveitando aquela vida”.
A obra do diretor é revitalizada não de uma forma cronológica - para isso, você pode pesquisar no IMDb -, mas artisticamente, tentando dialogar com a trajetória pessoal e profissional, e a relação com Trude, enquanto Angela elabora um tecido conectivo em sequências e extratos experimentais que dialogam com o estado emocional das cartas ou ainda com as memórias dos netos. A montagem é equilibrada, e não foge de tratar temas ásperos, tais como o fato de Pabst ter trabalhado para o cinema nazista.
Angela não o julga, são os espectadores que devem fazê-lo, ela informa os fatos como ocorreram. Desiludido e desencantado com a experiência hollywoodiana, incapaz de construir um conjunto de obras numa França ocupada, Pabst - e cuja obra havia sido banida pela Alemanha Nazista - aceitou trabalhar no país mesmo que não à frente de obras de propaganda. “Tive que pesquisar de modo aprofundado para descobrir o que, de fato, aconteceu. A família é traumatizada com esse termo ‘diretor nazista’, e tiveram a mente aberta para esclarecer essa parte da história. [Pabst] viajou a Los Angeles, mas não se tornou um diretor famoso porque odiava Hollywood, achava suas histórias superficiais e não logrou sucesso. Ele voltou à Europa, e os franceses o amavam, e quando a guerra eclodiu, ele tentou fugir para Hollywood, mas não pôde embarcar. E ele permaneceu na Alemanha, e não havia muitos diretores na Alemanha. O Regime pediu para que fizesse filmes, mas não o forçaram a fazê-lo. Mas ainda assim, ele teve o poder de fazer os filmes que queria, não propagandas, mas adaptações de obras literárias”.
O que é ainda mais curioso para quem recorda de Bastardos Inglório e a homenagem de Quentin Tarantino ao diretor. O Legado de Pandora é um documentário expressivo sem o aborrecimento de uma biografia cronológica convencional ou um estudo estilístico e temático da obra do diretor. É uma expressão das contradições de um artista cuja obra merece ser resgatada pela geração contemporânea.
Mambembe
Diretor e roteirista consolidado após os elogiados e premiados de As Duas Irenes (2017) e Tia Virgínia (2023), Fabio Meira realiza o resgate das filmagens realizada em 2010, em sua juventude artística, para uma não concluída ficção, realizada no contexto circense do interior brasileiro. A minha cabeça pensou no seminal Cabra Marcado para Morrer - respeitados o momento histórico e as comparações entre as obras - em como o artista é capaz de redescobrir o trabalho realizado ontem e embalá-lo em um projeto diverso daquele concebido originalmente. Não são mais os artistas circenses, ficcionalizados, que estão no centro do picadeiro de Mambembe, mas o fazer cinema nacional dentro de um regime de produção artesanal. Tudo muda, e o que era somente uma fabulação transforma-se em um exercício humano e até poético de reencontros.
O Fabio, hoje, reflete o que havia movido o Fabio, ontem, em produzir Mambembe. E, apesar da identidade, os Fabios separados por mais de uma década são artistas muito diferentes um do outro. É um ato de generosidade raramente colocado em prática, o de observar e acolher o artista inocente que deixou de ser, com os excertos de roteiro, as decisões quanto à abordagem e ao protagonismo, escolhendo este ou aquele em vez de tantas possibilidades, e uma obra exposta incompleta, ou nua, uma decisão para lá de corajosa porque é também o ato de desnudar o artista pela revelação do processo (e dos contratempos por que passou). Mambembe não é apenas a ficção jamais realizada, uma história deflagrada com a chegada de um topógrafo e o seu envolvimento com os artistas circenses locais, nem é apenas o documentário sobre o processo não concluído (ou cuja conclusão demorou 14 anos para acontecer, o que me parece mais bonito).
A obra de Fabio Meira é uma encruzilhada ou um purgatório, onde está o personagem interpretado por Murilo Grossi. Um purgatório artístico por que as filmagens (o autor também) tiveram que passar antes de elevá-las a um firmamento hipotético. Faltam os motivos por que a ficção jamais aconteceu ou talvez estejam presentes de maneira não óbvia, mas o fato é que se tornam irrelevantes diante da obra agora concluída. Diverso de Cabra Marcada para Morrer, em cuja película está impressa a ação censora e violenta da ditadura militar, em Mambembe está a natureza da arte, contratempos, hesitações e reencontros. O abandono ontem é o reencontro hoje, se Fabio Meira julgou que a obra não havia maturado no passado, agora está madura para ser a obra que sempre deveria ter sido. Vira um diálogo: a ficção que jamais foi e o documentário que é, a encenação e a realidade (vez que Índia Morena e Madona Show eram artistas circenses vivendo as versões de si próprias), tudo isso na alternância de forma e formato, em que assistimos o fazer cinema e os bastidores, e a versão finalizada, ambas ocupando o mesmo espaço e relevância dentro da obra concluída.
Fabio reencontra o Fabio de ontem, a partir do interesse ao apontar a câmera. Se rolou uma frustração de minha parte está no abreviado reencontro com as pessoas de ontem ou na ausência de outros reencontros em meu sentir indispensáveis, a exemplo do ator Murilo Grossi, com quem, eu tenho a impressão, Fabio não teve um encerramento em bons termos. Em uma obra de reencontro, acredito que este deva ser pleno, e levado a efeito em um nível de forma e memória, também deveria alcançar aquelas pessoas que, ontem, acreditaram nos sonhos de Fabio. Mambembe é um registro bastante acolhedor, mas cujo abraço tinha a capacidade de ser ainda mais largo.
Holy Cow
Os Incompreendidos, de François Truffaut, estabeleceu uma fórmula do cinema coming of age (ou de amadurecimento) até hoje não rivalizada, mesmo se consideramos toda a produção realizada nos Estados Unidos com a temática. Tudo que Os Incompreendidos apresentava em termos de realismo e existencialismo, o cinema estadunidense faz em forma de artifício, maniqueísmo e pieguice, com a exceção de obras como Boyhood em que a criança ou adolescente são tratados com a solenidade de adultos em formação, e postos em um contexto no qual percebemos a consequência de ações e eventos em sua vida. Holy Cow, o vencedor do prêmio jovem na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, celebra a tradição inaugurada por François Truffaut, embora acrescida de um nível de artifício que expurga a crueza em favor da esperança.
Totone é um jovem adulto que se diverte em festas com os amigos, nos arredores de uma comunidade francesa produtora de queijo. Eu não o chamaria de irresponsável, pura e simplesmente, embora não há dúvida de que a responsabilidade bate à porta depois do acidente de trânsito que mata o pai e lhe deixa com a responsabilidade de cuidar e prover a irmãzinha caçula, de 7 anos. Atordoado e sem grana, Totone aceita trabalhar na fábrica de queijo do pai de uma dupla de rapazes mais ricos, com quem brigou em uma festa. É demitido, e decide produzir, ele próprio, com a ajuda de seus amigos, um queijo premiado da região e assim ganhar uma competição com prêmios de até 30 mil euros.
Se Holy Cow fosse uma produção estadunidense, talvez até conseguisse o seu intento, mas a produção francesa está mais preocupada na compreensão se Totone conseguirá adquirir a responsabilidade necessária para “substituir” a figura paterna na criação de sua irmãzinha. Tudo gira em torno de responsabilidade na obra de Louise Courvoisier - responsabilidade pelas decisões e escolhas, responsabilidade pelo perdão - encenado através de recurso formal característico de filmes realistas: a câmera que acompanha e registra os personagens pelas costas, substituindo o voyeurismo por uma aproximação que não chega a ser inteiramente subjetivo, mas que nos oferece uma oportunidade de acompanhar.
A direção estabelece uma relação de intimidade entre o espectador e Totone essencial para torcer pelo êxito da empreitada, mesmo que o jovem rapaz pareça não ter nem os meios de produção, nem a expertise necessário para produzir um queijo premiado. O que lhe é abundante é o ímpeto jovial, a coragem de encarar a responsabilidade com o parco instrumentário que possui: a ajuda de amigos que mal sabem o que fazem, ainda que sejam providenciais apenas por estarem ao lado de Totone, a relação meio Romeu e Julieta justo com a irmã dos rapazes com que brigou, e o que aprende assistindo aos vídeos de YouTube ou as demonstrações in loco de uma produtora. Totone é um tanto parecido com Antoine Doinel: ele se movimenta intensamente em todos as direções e, embora isso aconteça de uma maneira até naturalmente não produtiva, o mero ato de sair da inércia e se movimentar já denota o seu desejo de transformação. Holy Cow até é seduzido pelo jeitinho hollywoodiano de amarrar as pontas e resolver-se, mas é tão bonitinho e bem intencionado, que é impossível não terminar feliz com o aprendizado de Totone.
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