Crítica em Português
Já se passaram anos desde o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, dois crimes socioambientais que uma parte significativa da mídia denomina eufemisticamente como acidente ou tragédia. Até o momento de escrita dessa crítica, os responsáveis - afinal, as empresas não agem por conta própria - não foram responsabilizados pelas mortes nem pela destruição ambiental, patrimonial e histórica provocada pela lama dos rejeitos da mineração que destruiu e poluiu o meio e a sociedade. Assim, do mesmo modo que o vencedor do Oscar Ainda Estou Aqui e o ainda inédito O Agente Secreto fizeram, O Silêncio das Ostras recorre à ficção como sua arma para resgatar uma memória ‘inconveniente’ e reconectar o espectador à história recente, costurando o crime à história de amadurecimento de Kaylane.
Kaylane é a filha única de uma família de mineradores, habitante de um vilarejo que acomoda os trabalhadores da empresa de mineração, a responsável por aquecer - um eufemismo novamente - a economia do município junto com o bar do português, em que aqueles gastam a mixaria que recebem em cachaça. O pai está invalido depois de um derrame, e recebe a assistência da mãe que deixou de ser mulher; virou cuidadora. A mãe está engasgada com esta realidade massacrante, e a chegada do circo na cidade coincide com o desaparecimento dela. Só restaram os irmãos de Kaylane, que, pouco a pouco, também deixam a família à procura de oportunidades melhores. Eles prometem retornar, embora saibamos que jamais o farão. Não podemos julgá-los por ‘ousar’ fugir do vilarejo e encontrar o próprio caminho, mesmo que desconfiemos que não acharão nada muito diferente do que possuíam. Depois de um tempo, resta apenas Kaylane, na idade adulta interpretada por Barbara Cólen (Bacurau, Fogaréu).
O abandono familiar atravessa a narrativa. O abandono do meio ambiente a interesses capitalistas das mineradoras é como o das mulheres reféns da domesticidade e mesmo de abusos cometidos por homens. Relacionar a natureza à mulher não é novidade, mas a narrativa realiza isto poeticamente através de Kaylane. Dispersa o bastante que mais parece habitar em um mundo particular, Kaylane está integrada à natureza que a cerca e flui no mesmo ritmo paciente e lentificado da montagem contida de Ivan Morales Jr. A beleza da natureza no estado bruto contrasta com a feiura de quando está corroída e do lago barroso de rejeitos, e talvez faça sentido passarmos mais tempo contemplando o que poderá ser rápida e cruelmente destruída pela ganância humana, abandonada. E igualmente abandonada tem sido a memória da sociedade. Esquecemos com tremenda facilidade - a mídia, a justiça e os comunicadores tampouco nos ajudam a contornar a nossa prática de esquecimento -, porque não são iguais a Kaylane, que não desiste da (vã) esperança de reencontrar a mãe, nem de Marcos Pimentel, em cuja narrativa está a prática da lembrança em forma de arte.
Entretanto, a arte, tal como Kaylane, até pode falar, mas a sua voz não alcança todos e nem é compreendida por todos. E O Silêncio das Ostras tem um título bastante curioso de muitas formas: a pérola é revelada apenas quando a ostra “abre a boca” e interrompe o silêncio. Ao mesmo tempo, Kaylane é igual a ostra, silenciosa e mesmo silenciada, ao passo que a natureza que a cerca é barulhenta, apesar de nós não a compreendermos - muitos nem desejam fazê-lo. A edição sonora de Camila Machado merece elogios pelo esmero em reconhecer a natureza que a cerca no som das cigarras e do vento. Tem um atributo até corporal e, às vezes, sensual junto à direção de fotografia de Petrus Cariry, como quando o amarronzado da textura da lama de rejeitos está associado ao sangue - a natureza está sangrando, e isto é feito a partir da textura e viscosidade da circulação. A esses departamento, ainda acrescento a direção de arte de Juliana Lobo, que retrata a pobreza daquele vilarejo a partir do aproveitamento de latas de sardinha criando um ‘apanhador de sonhos’ na entrada da casa, ou das sacas de grãos que fazem as vezes de cortinas improvisadas.
É tudo belo e expressivo, assim como a atuação de Barbara, apoiada mais no estar e na reação às ações dos outros ou da natureza ao redor. Ela comunica uma certa síndrome da imobilidade, que a força a permanecer, não de forma consciente, como se esperasse o retorno da mãe, mas inconscientemente como o resultado da integração plena com o meio que a cerca. É curioso que Kaylane seja capaz de ajudar a retirar um personagem do imobilismo, literalmente o arrancando da areia que o prende, apenas para ser, igual à árvore centenária cujas raízes são arrancadas do solo profundo pela força da água, retirada dali. Não há momento melhor para associar a personagem à natureza; elas são uma, de tal modo que não a enxergo senão como a Pequena Eva da canção que é (muito) repetida na narrativa. A Eva do Jardim do Éden… apesar de a canção ter mais camadas (argh, como desprezo esse termo camadas). A canção cita o final da odisseia terrestre e o dilúvio de Noé, ambos literalmente manifestados; também expressa o desejo de além do infinito voar, o verso que ecoa no coração da mãe, que anseia fugir e não sabe como.
O Silêncio das Ostras é um retrato da memória que é arrancada das páginas da história com o mesmo ímpeto que a humanidade destrói a natureza para extrair e lucrar o que pode com aquele quinhão, antes de passar à outro quinhão e continuar explorando-o, em um ciclo permanente, até não haver mais nem recursos a explorar, nem memória, nem história, muito menos Eva. Apenas lama.
O Silêncio das Ostras estreou hoje (26) nos cinemas brasileiros.
Entrevista com Marcos Pimentel e Barbara Cólen