Ishana Shyamalan, a filha de M. Night Shyamalan, nasceu antes de O Sexto Sentido (1999) e pôde aprender com a temática, a forma e o estilo do pai à distância e ainda quando trabalhou como assistente de direção em Tempo (2021). A estreia atrás das câmeras aconteceu em seis episódios de Servant, série criada por Tony Basgallop e disponível na Apple TV+, e cuja assinatura estilística é a do pai. Assim, tendo esta cineasta cursado a “faculdade familiar”, é até natural que o seu longa-metragem de estreia, Os Observadores, tenha o DNA paterno, por bem ou por mal, igual a um aluno que reproduz um professor antes de conquistar a segurança para desenvolver sua voz artística.
Tendo ainda aprendido com o pai a importância de roteirizar os seus próprios filmes, Ishana adaptou o livro irlandês escrito por A. M. Shine para contar a história de Mina (Dakota Fanning), que trabalha em um loja de animais e recebe o trabalho de levar um pássaro raro a um zoológico. Na viagem, Mina perde-se no interior de uma floresta e o seu carro sofre uma pane elétrica. Amedrontada, Mina encontra abrigo na casa remota habitada por três estranhos, Ciara, Daniel e Madeleine, com a qual aprende as regras de sobrevivência, particularmente a de não sair durante a noite sob pena de ser morta pelos tais observadores do título. E que recebem este nome porque, bem, espiam a casa de vidro mais famosa da televisão brasileira, ops!, por motivos desconhecidos.
Da mesma maneira que animais dentro de gaiolas, Mina e os demais estão confinados no que denominam de Poleiro embora somente ela pareça não estar resignada em estar presa. É um convite para refletirmos sobre a sociedade do espetáculo, de reality shows e redes sociais, em que os personagens não sabem quem está na “plateia” assistindo, e apenas continuam repetindo um mesmo padrão de comportamento: atuar com as suas próprias máscaras, criando uma versão distorcida deles próprios, porque incapazes de fazer diferente. É uma distorção presente desde o prólogo, em que Mina veste a peruca com que inicia um jogo de cena diário, no qual tem a oportunidade de fugir do próprio passado.
É também um motivo reproduzido visualmente, a partir de espelhos de duas faces, que não revelam quem está do outro lado, tão somente um reflexo do ego. E o fato de Mina ter uma irmã gêmea e de revisitar uma memória traumática apoiam essa eficiente mas óbvia articulação de duplos (centro da narrativa) e traumas (o discurso metafórico com que a diretora lida com a literalidade do horror). Neste aspecto, Ishana é autora de sua própria autoria, porque enquanto o pai abraça a fantasia incondicionalmente (o amigo Thiago Beranger denomina isso de fé), despreocupado em relacioná-la com as dores e desejos dos personagens - uma exceção é Sinais -, ela costura a mitologia e o folclore à trajetória da protagonista de modo inseparável. Tão inseparável que a conclusão exige uma aceitação dos traumas constituintes dos personagens.
Nesse momento, inclusive, a lógica voyeurística que rege parte da narrativa já pegou o trem de volta para casa, substituindo-a por um diálogo com a inteligência artificial e o desejo de reproduzir a humanidade onde esta, a princípio, não parece existir. O ato de observar extravasa o ‘consumir pelo olhar’, em direção a algo mais doentio e em certos momentos, belo e poético. A cena em que duas criaturas dão as mãos do mesmo modo que dois personagens é evocativa, ainda mais porque Ishana não grita ao espectador a sensível imagem, deixando para nossos olhares ávidos perceber essa relação.
De certo modo, é semelhante à atuação de Dakota Fanning, cujos olhos penetrantes e expressivamente grandes e a palidez da pele auxiliam tremendamente na criação e no desenvolvimento de uma personagem apática e anestesiada pelo trauma. Mina, graças à Dakota, é a personagem apta a desafiar aquele predicado, justo porque parece haver esgotado o medo e a paranoia que aquela situação inspira. Não esperaria o mesmo das ótimas Georgina Campbell (de Noites Brutais) ou Olwen Fouéré (de O Homem do Norte), pois interpretam personagens conformadas, mesmo que por razões distintas.
Ishana é hábil, igual ao pai, na construção da tensão indispensável para o suspense e o horror, sugerindo mais do que mostra, brincando com o desenho sonoro e a fotografia de Eli Arenson (de Lamb), que contrasta, agressivamente, os tons dourados no interior do Poleiro com as sombras noturnas por onde se esgueiram os observadores. Por outro lado, Ishana é menos segura narrativamente, apelando à exposição, em vez de apostar na imagem, ainda que mereça elogios por não explicar o que alguns chamarão de furos de roteiro.
A experiência é mais positiva, pois cercada de artistas competentes e com a confiança no que aprendeu com o pai (que, ao menos teoricamente, é um dos diretores essenciais da Hollywood pós-1999), Ishana Shyamalan é uma espécie de halfling, apta a mimetizar o estilo do pai e pincelar, ainda que timidamente, a sua própria individualidade em um bom exercício de horror claustrofóbico e folclórico.
Aproveite e leia também a crítica do Thiago Beranger, no Cinema com Crítica.