Relíquia Macabra é a terceira adaptação do livro The Maltese Falcon (1929), escrito por Dashiell Hammett, e tem início com a contratação, pela enigmática dama fatal Brigid O’Shaughnessy, da firma de detetives particulares Spade & Archer, sob um falso pretexto. Archer é morto, e a polícia crê que Sam Spade pode estar envolvido.
A primeira adaptação – O Falcão Maltês (1931), de Roy Del Ruth – foi realizada antes da vigência do Código Hays, criado em 1930, mas apenas aplicado a partir de 1934. O Código de Produção, apelidado Código Hays a partir do político William Hays, foi criado pela Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA), hoje a Motion Pictures Association (MPA), como a forma de autorregulação e autocensura da indústria cinematográfica. O Código Hays continha um conjunto de proibições (Dont’s) e recomendações (Be Carefuls), que estabeleceriam a base do que seria moral ou imoral na produção cinematográfica hollywoodiana.
O Código Hays fez com que a Warner Bros., apenas 5 anos, adaptasse novamente o livro em Satã Encontrou uma Dama (1936): isto porque O Falcão Maltês não pôde ser relançado nos cinemas, já que, para a visão da época, infringia os Dont’s por ter conteúdo lascivo.
Relíquia Macabra também precisou contornar o Código Hays para realizar a visão do roteirista e diretor estreante John Huston, e com isso, ocultar a orientação sexual de seus personagens e, assim, do tema implicado na narrativa. É que o Código Hays definiu a representação LGBTQIA+ no cinema hollywoodiano por décadas, e fez com que a homossexualidade só pudesse ser representada de modo dissimulado e codificado, com base no item 4 dos Dont’s.
Qualquer inferência de perversão sexual, categoria em que a homossexualidade era incluída pelos censores do Escritório Breen, administrado por Joseph Breen, o indicado por William Hays para aplicar o Código de Produção.
Como retratar Joel Cairo, personagem interpretado por Peter Lorre e que, no livro, é homossexual, e evitar a censura? A partir de detalhes, como o perfume de gardênia e o modo com que o ator manipula a sua bengala, retratado no corte abaixo:
“O Falcão Maltês é a primeira obra-prima gay de Hollywood. Gênero é considerado fluido hoje em dia, mas a intensa interação entre o macho alfa Spade e os pretendentes gananciosos retrata uma competição única pelo ideal de masculinidade”. (Armond White)
Desse modo, Relíquia Macabra é mais do que um filme noir sobre a tentativa de um detetive particular em provar sua inocência, encontrar a estatueta do Falcão Maltês e responsabilizar o assassino do sócio, é também um filme sobre o conflito que há entre os padrões de masculinidade exercidos por Sam Spade, de um lado, e por Joel Cairo, Kasper Gutman e o ‘pistoleiro’ Wilmer, do outro, e até entre a masculinidade e a feminilidade, vez que tema comum do cinema hollywoodiano na década de 30 e 40 é a guerra dos sexos.
Mas vou me ater à orientação sexual dos antagonistas, que Sam Spade “desarma” com facilidade – uma castração que subtrai de Joel Cairo e Wilmer a masculinidade que exteriorizam através de uma arma de fogo.
A propósito, Wilmer é chamado de gunsel, que na legenda em português é traduzido para pistoleiro. Gunsel foi uma gíria usada para designar homens gays mais jovens em um relacionamento com homens mais velhos, repetida por Sam Spade a fim de ofender e deslegitimar Wilmer – cuja entonação de Sidney Greenstreet, ator teatral estreante nos cinemas e indicado ao Oscar por sua atuação como Kasper Gutman, faz com que pareça Wilma, não muito diferente de Fred Flintstone.
“Os personagens de Cairo e Gutman são ambos (provavelmente) vilões gays que, além disso, compartilham o ponto em comum de serem de alguma forma ‘abjetos’ em seus corpos, especialmente em comparação com o heterossexual, atraente e branco Sam Spade. Gutman mantém a obesidade que lhe foi dada no romance de 1929, o que torna o público propenso a lê-lo de forma assexuada ou de alguma forma desviante. Em contraste, a óbvia alteridade racial de Cairo é reforçada” (Eda Günaydın)
Concorde com essa interpretação de Relíquia Macabra, a estatueta do falcão pode ainda ter significado fálico pela maneira com que é tocada pelos personagens – em especial Kasper Gutman. A estatueta é, talvez, a sexualidade buscada e desejada, e, ao se revelar falsa, condena o desejo sexual dos antagonistas, dentro da linha de ideologia e propaganda defendida pelo Código Hays.
Quanto a Sam Spade de Humphrey Bogart, a estatueta é prescindível. A narrativa já deixou evidente que o personagem pode conquistar a mulher que deseja – todas as personagens femininas curvam-se a seus desejos –, pode desarmar quem quer que seja – então a masculinidade dele é alfa, o que é reforçado por não temermos por seu destino – e pode optar por repelir ou rejeitar a dama fatal, em vez de se envolver e sofrer uma punição cinematográfica, tal como a que ocorreu com Walter Neff em Pacto de Sangue (1944), por exemplo.
Relíquia Macabra é um dos filmes noir essenciais e, para mim, ainda fica mais rico se pensarmos na riqueza que existe sob o decalque da superfície.
O clássico de John Huston não é apenas uma ilusão.