Todo filme de tubarão deve à Tubarão (1975), de Steven Spielberg. Só que há filmes que devem mais, muito mais, e Sob as Águas do Sena (Sous la Seine), lançamento no catálogo da Netflix, é um desses casos.
Sophie (Bérénice Bejo) interpreta uma oceanóloga que, após uma tragédia no passado, permaneceu reclusa num aquário parisiense. Certo dia, a ativista ambiental Mika (Léa Léviant) procura-a para ajudá-la a compreender o padrão migratória de Lilith, o nome dado à tubarão-fêmea causadora daquela tragédia que citei anteriormente, e cujo sinal apareceu no rio Sena, a dias de uma competição de triatlo. O desejo do grupo ao qual pertence Mika é guiar Lilith de volta ao oceano, mas sabendo que o tubarão é mais do que parece ser. Enquanto isso, a polícia fluvial, na figura de Adil (Nassim Lyes), tenta convencer a prefeita de Paris a cancelar o triatlo (alô, Spielberg!), o que temos a certeza de que não acontecerá.
Xavier Gens, o diretor de Hitman: Assassino 47 (argh), O Abrigo (err) e Exorcismos e Demônios (ouch), é surpreendentemente sóbrio enquanto estabelece a ameaça, ou até mesmo se Lilith pode ser considerada uma ameaça, e o drama de Sophie que pretende evitar a repetição do mesmo massacre humano que testemunhou anos antes. A partir do roteiro de Maud Heywang e Yannick Dahan, Xavier recontextualiza a sua ameaça coerentemente com a bandeira ambiental do governo francês: os oceanos de plástico, ou o sétimo continente, assustam mais a nossa geração do que um tubarão esfomeado. A superfície da água coberta com produtos plásticos e redes de pesca é um ambiente grotesco para quem navegou em mares translúcidos, e a sensação é desoladora a ponto de compreendermos a ação dos ambientalistas, ainda que desprovidos de razão.
É onde esse terror diferencia-se. Não é apenas o capitalismo predatório, que manteve a praia de Amity e o rio Sena abertos ao público, a despeito da ameaça de um tubarão esperando o rodízio ser servido, é também o ambientalismo infantil, que tenta domar a natureza. Isto rende uma das melhores cenas recentes do gênero, no interior de uma catacumba, em que tubarões e humanos desesperados matam humanos (desesperados) revelando a incapacidade contagiante de nossa espécie em obedecer a regras mínimas de segurança: tipo, não acreditar que tubarões são bichinhos de estimação. A câmera chacoalhante e a montagem alucinada, combinada com personagens que tropeçam na água e saem de lá amputados, é o ápice da narrativa em matéria de horror.
No entanto, com a mesma seriedade com que trabalha a premissa (de um tubarão à solta no rio Sena), a narrativa desanda rapidamente para o filme B quando começa a incluir um elemento cientificista para justificar o que acontecerá no clímax. E nada que eu disse preparará vocês para o que o roteiro planejou, já que é o tipo momento all-in, em que a narrativa aposta o que possui (e o que não possui), para surpreender a expectativa construída. Adianto que não é uma metáfora pautada em conto de alerta, para prevenir o público de agredir o meio ambiente, muito menos apenas uma crítica ao poder estatal - neste sentido, a prefeita é uma cópia de Marine Le Pen, a política de extrema-direita do país e negacionista das mudanças climáticas. Não é tampouco uma aventura como é a segunda metade de Tubarão, em que homens altruístas e abnegados decidem caçar o animal, arriscando a própria vida.
Xavier Gens brinca com as possibilidades dentro de um cinema livre, que articula um prisma de elementos introduzidos na narrativa (ex. o que os ‘pescadores’ encontraram no começo) ou herdados do que esperamos do tipo de produção em um clímax caótico e imprevisível. Nada é ignorado: a ganância capitalista, a ingenuidade ambientalista e a imprevisibilidade da natureza contemporânea, até a ação militarista atrapalhada, em uma sequência apoteótica, que melhora ainda mais em razão de uma falta de vergonha do diretor em elevar à enésima potência os eventos (sugestivamente nos créditos finais).
É perdoável o engodo dramático - em uma atuação de Bérénice Bejo, atriz que adoro, que tenta dignificar a narrativa mais do que esta parece merecer - e a (des)articulação ciência e política, que parece ter sido introduzida porque o roteiro precisava disto em um momento específico, em vez de ser desenvolvida apropriadamente, comprovando que nem todo mundo aprende com o exemplo de Tubarão. Mas Sob as Águas do Sena é bom mesmo quando abre mão da lógica de filme A, que se leva a sério, e abraça de vez a de filme B. Neste ponto, lembra mais o tresloucado Do Fundo do Mar quando Samuel L. Jackson declamava um extenso monólogo encorajador antes de ser abocanhado por um tubarão, que não estava preocupado em pedir com licença ou colocar o guardanapo antes de começar o banquete.
Mesmo que a barbatana cortando a água aterrorize, é um ataque surpresa que pega o espectador desprevenido e o deixa atônito que deixa, às vezes, as marcas mais funda.