Como muitos diretores asiáticos, John Woo foi importado para Hollywood para trazer temperos à produção de ação norte-americana, que tinha perdido o apelo popular que tinha na década de 80. O Alvo (1993), A Última Ameaça (1996), A Outra Face (1997) e Missão: Impossível 2 (2000) não são obras da mesma qualidade daquelas asiáticas que dirigiu anteriormente, apesar de tampouco decepcionarem, como os fizeram os fracos Códigos de Guerra (2002) e O Pagamento (2003). Então, John Woo retornou à China, e somente retornou ano passado com O Silêncio da Vingança (2023). Já com The Killer (2024), que entrou no catálogo do Amazon Prime Vídeo, o diretor revisitou o clássico O Matador (1989), protagonizado por Chow Yun-Fat, em uma produção internacional estrelada por Nathalie Emmanuel, Omar Sy e Sam Worthington.
Longe daquele papo comum em rodas cinéfilas quanto à necessidade de refilmagens - o que debati há alguns dias na crítica de Não Fale o Mal (2024) - The Killer é a chance de um diretor revisitar a sua carreira e reler, em outros contextos (de gênero, cultural, temporal, idiomático, industrial até, pois o gênero de ação tem vivido a Era de Prata - se considerarmos que a de Ouro aconteceu durante o reinado dos brucutus), uma obra marcante. Agora é Zee (Emmanuel) a assassina do título, contratada para um trabalho pelo agenciador Finn (Worthington), mas que desenvolve consciência tardia ao decidir manter viva uma jovem mulher que perdeu a visão. Enquanto isso, o investigador Sey (Sy) aproxima-se da identidade de uma quadrilha internacional responsável por tráfico de drogas em Paris - o que sabemos irá resvalar na trama central.
Ainda que The Killer não ofereça originalidade em termos narrativos e até estilísticos, existe um componente bastante sensual ou até erótico, cinematograficamente falando, em assistir a um filme de John Woo. É como enxergar a nudez do corpo por trás de um véu de seda que flamula no ar, o que, em termos de uma encenação de ação, é como se fôssemos expostos simultaneamente à ação propriamente dita e ao artifício, ao verniz. Se Missão: Impossível subtrai o artifício em prol de uma relação imediata com a ação, quando somos incapazes de discernir entre Tom Cruise e Ethan Hunt, ou mesmo John Wick aposta no estilo a fim de conferir individualidade à ação, The Killer está em uma posição atraente em que reconhece ser uma ilusão e um espetáculo de ação, e aí esta a sua beleza.
É como se o véu atrás de que Nathalie Emmanuel (ou a sua dublê) realiza a encenação da coreografia, que pode ser a câmera lenta por exemplo, fosse o artifício responsável por amplificar o prazer envolvido em apreciar uma ação que não quer parecer crível e verossímil, parece cinematográfica, ensaiada como passos de dança ou balé. Ao vê-la saltar no ar, em posição de espacate, atirando em capangas instantes antes de aterrizar sobre o rosto de um terceiro, e tudo isto em câmera lenta, a ação é suspensa para que o espectador aprecie e contemple. Isto caminha junto a cenas de ação até características - perseguições nas ruas estreitas parisienses, troca de tiros e golpes de artes marciais - embora com a energia de um diretor septuagenário e que parece celebrar aquilo que o tornou clássico, enquanto reflete poética e inclusive hiperbolicamente sobre o próprio estilo.
Enquanto isso, Zee estabelece uma relação com Jenn (Diana Silvers), representativa da inocência e esperança perdidas antes de se tornar assassina, e cujo restabelecimento é também o da própria dignidade e humanidade. Enquanto isso, a ambiguidade com que é grata a Finn, mas desafia as suas ordens, ou o carinho pelo comerciante interpretado por Tchéky Karyo são ilustrativas da busca pela figura paterna, de que inevitavelmente irá se emancipar, enquanto o envolvimento com Sey permanece no flerte entre iguais desobedientes de ordens superiores. A propósito, gosto de assistir a Omar Sy no modo mais sério que é o que a investigação exige dele, embora sem perder o bom humor que é característico do ator - tipo quando repetir a fuga espetacular de Zee com resultados bastante diferentes. Além disso, o roteiro escrito por Brian Helgeland, Josh Campbell e Matt Stuecken é feliz em introduzir reviravoltas inteligentes na trama, motivações e decisões convincentes dos personagens - não é porque Zee desobedece Finn, que este automaticamente se volta contra ela; aliás, a tentativa dele em barganhar impressiona - e uma identidade bastante para que não estejamos somente assistindo à transposição de um clássico ao cinema de hoje.
Talvez esse sempre seja o melhor argumento para “defender” refilmagens, ao menos para não criticá-las cegamente: a possibilidade de, a partir de alterações contextuais, criar uma obra que somente compartilha traços genéticos com a predecessora. E mal esses, já que o John Woo de 1989 não é o John Woo de 2024, e mesmo que o estilo não seja vibrante quanto era mais jovem, agora é mais sábio em perceber como embelezar e inscrever em poesia o que, no fim do dia, é apenas soco, tiro e explosão.
The Killer está disponível no Prime Vídeo - que mancada que o serviço de streaming não adquiriu conjuntamente o original. Seria uma ótima sessão dupla.
O The Killer original é o único filme famoso do John Woo que eu ainda não assisti... Vou refazer isto em breve e assistirei a esta refilmagem feita por ele mesmo, o que não dá razão para quem sempre reclama de refilmagens sair falando mal do filme.