É um tanto quanto passivo agressiva a afirmação do subtítulo, que você encontrará com uma certa frequência nos textos ou vídeos sobre The Last Showgirl. Embora até pareça uma constatação óbvia à primeira vista, de que a atuação pela qual tem sido cogitada ao Oscar - apesar de considerar improvável a indicação - seja a sua melhor, há uma implicação de que a sua carreira de 30 e tantos anos como modelo, coelhinha da Playboy e estrela de S.O.S. Malibu (Baywatch) tenha sido somente uma preparação para o momento atual. Ainda mais se considerarmos que a indústria só objetificou e “consumiu” Pamela Anderson pelo corpo, igual acontece com Shelly, a protagonista deste estudo de personagem, a dançarina exótica que viveu o auge nos palcos de Las Vegas e agora aguarda os dias finais do show de que participa há décadas.
De modo culposo, sinto que o elogio é cruel e, mesmo assim, sinto-me compelido a fazê-lo. Compelido a descobrir uma relação simbiótica entre atriz e personagem, da mesma maneira como fora feito com Mickey Rourke, em O Lutador, com o qual este drama tem semelhanças impossíveis de serem ignoradas. Em nível de conteúdo - há uma subtrama envolvendo a relação conturbado entre Shelly e sua filha, interpretada por Billie Lourd -, e em nível formal com um estilo emprestado do cinema de Darren Aronofsky, em acompanhar literalmente Shelly, com a câmera pelas costas, com um quê de voyeurismo documental. A direção de Gia Coppola, neta do Francis, também tem muito de Sean Baker, e o seu retrato de vivências marginalizadas na periferia do sonho estadunidense. A Las Vegas serve as vezes da Disney de Projeto Flórida, apagada no fundo, uma experiência da cidade longe de usufruir seus prazeres capitalistas, mas de provê-los.
E no ano de A Substância, o roteiro de Kate Gersten discute o mesmo tema da relação do olhar do espectador com o envelhecimento feminino de símbolos sexuais - mas sem a fantasia ou o horror corporal. Por ter tido o corpo milimetricamente explorado pela câmera e pelo desejo masculino (inclusive com a divulgação delituosa do vídeo íntimo com Tommy Lee) - um jogo de que participou, mas em uma condição de desvantagem, e dentro de uma indústria capitalista exploratória -, Pamela Anderson não pôde expor seu talento ou tempo cômico, pois o male gaze (o olhar masculino) não tinha o interesse em conhecê-los. Ao envelhecer, aquela mesma atriz cuja imagem na juventude ainda é veiculada não oferecia nada mais a ser consumido, uma realidade experimentada de um modo ainda mais brutal por Shelly, na linha da pobreza, contando dólares descontados do contracheque pelo rasgo no vestido com que se apresenta.
O envelhecimento é debatido com a ainda mais experiente Annette (Jamie Lee Curtis, em um papel muito superior do que aquele que lhe deu o Oscar de Atriz Coadjuvante), que abandonou os palcos para trabalhar como garçonete, e vê as suas horas reduzidas porque a gerência prefere atendentes mais jovens. Ou em outro sentido, com as jovens Mary-Anne (Brenda Song) ou Jodie (Kiernan Shipka), a primeira, que enxerga na dança apenas um ganha-pão, e a segunda, com uma ingenuidade que até comove. E enquanto escrevo sobre essa forma honesta ou idealizada de enxergar sua exploração, reflito que essa é uma forma que a indústria vende um fracassado sonho estadunidense. Pois Mary-Anne e Jodie são apenas quem Annette e Shelly foram décadas atrás. No centro desse coro feminino, o produtor do show, Eddie (Dave Bautista), um sujeito ambíguo, pois é empático à condição das dançarinas e consciente da posição em que está. Ao término do show, Eddie não terá dificuldade em encontrar um emprego, não há etarismo aqui.
Tenho a sensação de que Gia Coppola tem a mesma ambivalência de Eddie. Enquanto demostra um interesse genuíno em suas personagens marginalizadas, e rejeita o olhar piegas e sensacionalista, mantém um privilégio voyeur de assistir à distância. Quando intervém, narrativa e estilisticamente, questiono-me se Gia gosta mesmo de Shelly, ou se a personagem é só veículo de discurso. Eu admiro a coragem de não expor o corpo e a performance de Shelly, mas expor o de Annette, vez que estabelece um diálogo entre a forma com que cada personagem lida com o envelhecimento. Em contrapartida, por que retratar o espetáculo de um jeito meio crítico e patético, que funcionou dentro da lógica de Pequena Miss Sunshine, especialmente quando parece não haver nada em que Shelly possa agarrar para prosseguir vivendo?
Não há luzes néon, nem glitter bastante capaz de disfarçar o fundo do poço capitalista e exploratório que Las Vegas simboliza, e The Last Showgirl é forte em expor as cores e formas da cidade do pecado. Daí a ridicularizar o que Shelly encara como arte, parece-me talvez tão cruel quanto como a cidade a explorou. E é uma reflexão que vale ainda para Pamela Anderson.
The Last Showgirl ainda está inédito no Brasil.