Desde a cena inicial, em que assistimos a Eva (Grazi Massafera) cavar o buraco onde parece ter enterrado uma criança, Uma Família Feliz fisga nossa atenção pelo mistério que envolve a narrativa do início ao fim. É uma decisão de estrutura que subjuga, por bem e por mal, a narrativa, já que o flashforward (ou seja, um espiada no tempo futuro) colocará em perspectiva todos os eventos pretéritos apresentados da família típica de classe média carioca, também composta por Vicente (Reynaldo Gianecchini) e as suas filhas gêmeas de um casamento anterior, Sara e Ângela (Luiza Antunes e Juliana Bim). A ambientação do roteiro de Raphael Montes, após expandido em livro, é o tradicional condomínio carioca, que confunde segurança com vigilância, seja através das câmeras de monitoramento espalhadas pelo perímetro comum, seja a realizada pelos vizinhos, especialistas em tomar conta da vida alheia.
É um ambiente oportuno para uma discussão que flerta com temas contemporâneos envelopados dentro da embalagem de thriller e melodrama, e já podemos perceber a persistência do olhar esquivo no aniversário das irmãs gêmeas, que sucede a macabra cena inicial em estrutura, mas a antecede cronologicamente. Nela, Eva está grávida, e a gravidez trouxe expectativa e também ansiedade, e a ausência de uma âncora afetiva concreta em Vicente apenas reforça a ambiguidade da gestação. Para preencher o seu tempo, Eva põe em prática o que aprendeu com o pai: a criação de bonecas realistas e um tanto quanto assustadoras. Com o nascimento de seu filho, a situação agrava: Eva começa a experenciar apagões, briga com o marido que insiste para que permaneça em casa e cuide do recém nascido em vez de trabalhar, e sofre com o que parece depressão pós-parto em razão da rejeição do filho ao leite materno.
A cena inicial, acrescida da bagagem cinematográfica que trazemos conosco, alimenta o sentimento de desconfiança em relação a Eva. Ainda são acrescentadas pistas, tipo o remédio que o médico sugestivamente relembra na consulta de Sara (que sofre de uma doença grave), e já não sabemos se devemos acreditar naquilo que nossos olhos veem. E é curioso que seja assim, já que a direção de José Eduardo Belmonte (de Entre Idas e Vindas e Alemão) parece discutir o olhar voyeur e a materialidade que este nos revela. A sensação é de xeretar, quando a câmera movimenta-se furtivamente por trás da parede para encontrar Eva. Mas e se o que estamos assistindo não for real propriamente dito, ou então só uma fração do real, portanto incapaz de revelar fatos?
Essa conclusão fala muito da questão do linchamento comunitário - hoje em voga com os tribunais das redes sociais que cancelam as pessoas mesmo sem saber as realidades na qual se encontram -, um tema debatido com propriedade dentro da narrativa e que é expositivo da hipocrisia da classe média. Estamos sempre preparados a julgar e tirar conclusões a respeito dos outros - inclusive dos personagens cinematográficos - sem o benefício da dúvida ou o direito de resposta, ou de que esta resposta seja recebida com o mesmo peso do que as convicções de cada um. Uma Família Feliz - um título irônico - é, assim, um trabalho intrigante sobre o gaslight (o ato de, em bom português, fazer as mulheres parecerem loucas). Isso feito a partir de elementos narrativos (o flashforward inicial) e formais (a decupagem voyeur), que distribuem parcialmente as informações e fazem com que realmente trilhemos o mesmo caminho que deveríamos condenar. É, a meu ver, uma artimanha maliciosa em colocar um espelho diante do público, mas que não converge com o roteiro (já que há isto ou aquilo que só existe na cabeça de Eva).
Por falar nisso, a edição sonora desempenha um papel essencial em criar a atmosfera de thriller: o sibilo do vento ou o choro entreouvido à distância ajudam a fortalecer a atmosfera, realçada pela hostilidade na casa. E muito deve ser dito em relação à casa de Vicente, não do casal, como ele afirma ao chamá-la de minha casa, que é trabalhada pela direção de arte em um espaço de falso acolhimento, e cuja claustrofobia é ainda reforçada pela fotografia que aprisiona Eva. A personagem de Grazi Massafera é uma mulher de passado, presente e futuro trágicos - a cena inicial, ela permanece conosco - que a atriz até tenta pincelar toques de alegria, rapidamente sufocados pela realidade em que se encontra. Já Reinaldo Gianecchini reforça a postura convicta de Vicente ao tomar praticamente todas as decisões erradas, acreditando estar agindo corretamente.
No entanto, ainda que tenha gostado muito dos elementos de estilo de Uma Família Feliz, e em como o thriller e o melodrama harmonizam-se numa narrativa brasileira, mas que flerta com o cinema de gênero norte-americano (a trilha musical é composta basicamente por canções em inglês), eu tenho problemas meio incontornáveis com as revelações do terceiro ato - que claramente não exporei. É um momento de choque, a princípio, e com êxito em puxar as cordas do espectador no momento imediato. Após, porém, a mesma revelação é a oportunidade para que o espectador revisite os eventos narrativos e, no meu caso, dê com a cara na parede ao questionar a viabilidade do que Raphael e Belmonte querem que eu acredite no final (aí incluído também não somente a revelação, mas a maneira como os personagens reagem a ela).
Apesar de, na maioria dos casos, o final ser parte integrante, mas não determinante do filme, no caso de thrillers ou mistérios a relevância é significativamente maior. E talvez minha frustração ao término seja produto de ter curtido a construção feita até chegar àquele momento. Seja como for, Uma Família Feliz é uma obra eficiente de um gênero que o cinema brasileiro poderia explorar mais.