Ouriço é um animal coberto de espinhos, com a finalidade de protegê-lo da ameaça de predadores no mundo exterior. Diferentemente desses animais, que conseguem entrar em harmonia com o meio onde estão, as ‘pessoas ouriço’ parecem aprisionadas em um ciclo perpétuo de ausência de contato transformador, mesmo quando realizam esforço no sentido de abaixar os espinhos - as defesas - e se aproximar de outros. Mike (Frank Dillane, o Tom Riddle de Harry Potter) é uma destas ‘pessoas ouriço’. Antes mesmo de nós o conhecermos, a pregação evangélica na rua alardeia que ‘Deus ama todo mundo’ - um amor que não parece alcançar, no sentido prático, pessoas que estão em situação de rua, como Mike, que desperta com a pregação e vocifera qualquer coisa contra esta antes de se colocar em movimento em uma Londres indiferente.
Mike, dependente químico, pede dinheiro para os passantes na rua, fotografado com a sensibilidade de um reality show: a câmera do outro lado da rua documenta a reação do londrino médio à ação do ator. Muitos o ignoram, poucos o ajudam, e há até um grupo de amigos que o considera pitoresco o suficiente para convidá-lo a sentar à mesa. Esta abordagem cinema verité do ator e estreante na direção, Harris Dickinson (de Baby Girl ou Triângulo da Tristeza), é o ponto de partida da narrativa e também o que esta negará à medida que o desenvolvimento da trama empurrar Mike para o caminho do absurdo. A impressão é que a realidade social e urbana contemporânea é absurda, e não haveria meio de representá-la que não a partir de um amadurecimento da narrativa e estilo em direção a formas absurdas.
Depois de ser assistido por um homem negro - se enfatizo a etnia, é por considerar um histórico de opressão e marginalização -, que ignora os espinhos sociais e metafóricos, aproxima-se, debate a crise de empatia contemporânea e oferece para comprar-lhe um café da manhã, Mike o agride para roubar o seu relógio e penhorá-lo. Um evento que a narrativa, sabiamente, enfatiza do ponto de vista de Mike e da vítima em um momento de retomada de consciência. Urchin não vitimiza, não justifica, e nem abona Mike, mas o acompanha, mesmo que o roubo que pratica não seja apenas a subtração material ou um Robin Hood às avessas. Dickinson sabe que um roubo é um terrorismo emocional ou indutor de ansiedade, é um evento que acarreta estresse pós-traumático e faz a vítima ter que modificar, talvez para sempre, o padrão de comportamento pelo medo justo de ser vítima novamente.
O realismo desagua no texto: a burocracia do sistema prisional ou das ações cautelares e condicionais, tais como as reuniões semanais ou o encontro com a vítima. Dickinson emprega a câmera e a montagem como forma de supressor emocional do protagonista, e elementos simbólicos, que pipocam no cotidiano de Mike, para pontuar traumas não escavados em um processo arqueológico de conhecimento do protagonista, tal como a musicista, cuja identidade é dada à interpretação do público, mas não a consequência de sua presença, que é sublinhada através da reação de Frank Dillane, premiado com o prêmio de melhor ator na Um Certo Olhar. Se Dickinson não apara os espinhos de seu protagonista, tampouco Dillane, que não cede ao impulso de tornar Mike uma vítima e injustiçado da sociedade.
Com isso, não quero afirmar que pessoas na mesma situação que Mike não mereçam a ação de resgate e reinclusão na sociedade por parte de políticas públicas, somente que a ação é uma via de mão dupla, que exige ação e concessão mútua. A mesma alegria de ver Mike trabalhando, confraternizando, é a mesma tristeza de vê-lo ceder ao vício, ou revelar a sua face grosseira e violenta. Tudo resultando em uma visão fantástica de um ralo que atrai a câmera - e Mike - para a escuridão do próprio ‘eu’, suprimindo tempo e espaço em favor de uma experiência cíclica, de reincidência, de morte e renascimento. Talvez Urchin não acerte todos os golpes que deseja acertar, e a relação com as pessoas que convivem com Mike, especialmente a coletora de lixo e hippie francesa vivida por Megan Northam, seja só um atalho construído não naturalmente para atingir a batida narrativa desejada. Mas Dickinson demonstra inventividade e sensibilidade para uma história comum nas ruas, e marginalizada inclusive nos cinemas.
Urchin está na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2025.
English review
An urchin is an animal covered in spines, which are intended to protect it from the threat of predators in the outside world. Unlike these animals, which are able to come into harmony with their surroundings, ‘hedgehog people’ seem trapped in a perpetual cycle of lack of transformative contact, even when they make an effort to lower their spines – their defenses – and reach out to others. Mike (Frank Dillane, Tom Riddle from Harry Potter) is one of these ‘hedgehog people’. Before we even meet him, the evangelical preaching on the street proclaims that ‘God loves everyone’ – a love that does not seem to reach, in a practical sense, people who are homeless, like Mike, who is awakened by the preaching and shouts something against it before setting off on a journey in an indifferent London.
Mike, a drug addict, asks passersby for money on the street, photographed with the sensitivity of a reality show: the camera on the other side of the street documents the reaction of the average Londoner to the actor's action. Many ignore him, few help him, and there is even a group of friends who consider him picturesque enough to invite him to sit at their table. This cinema verité approach by actor and debutant director Harris Dickinson (of Baby Girl or The Sad Triangle) is the starting point of the narrative and also what it will deny as the development of the plot pushes Mike towards the path of absurdity. The impression is that contemporary social and urban reality is absurd, and there would be no way to represent it other than through a maturation of the narrative and style towards absurd forms.
After being assisted by a black man - if I emphasize ethnicity, it is because I consider a history of oppression and marginalization - who ignores the social and metaphorical thorns, approaches, discusses the contemporary crisis of empathy and offers to buy him breakfast, Mike attacks him to steal his watch and pawn it. An event that the narrative, wisely, emphasizes from the point of view of Mike and the victim in a moment of regaining consciousness. Urchin does not victimize, does not justify, or endorse Mike, but accompanies him, even though the robbery he commits is not just material subtraction or a reverse Robin Hood. Dickinson knows that a robbery is an emotional or anxiety-inducing terrorism, it is an event that causes post-traumatic stress and makes the victim have to change, perhaps forever, the pattern of behavior for the justified fear of being victimized again.
Realism flows into the text: the bureaucracy of the prison system or of precautionary and conditional actions, such as weekly meetings or the encounter with the victim. Dickinson uses the camera and editing as a way of suppressing the protagonist's emotions, and symbolic elements, which pop up in Mike's daily life, to highlight traumas that have not been excavated in an archaeological process of knowing the protagonist, such as the musician, whose identity is given to the audience's interpretation, but not the consequence of her presence, which is highlighted through the reaction of Frank Dillane, who won the award for best actor in Un Certain Regard. If Dickinson does not smooth over his protagonist's thorns, neither does Dillane, who does not give in to the impulse to make Mike a victim and an injustice suffered by society.
By saying this, I do not mean to say that people in the same situation as Mike do not deserve the action of rescue and reintegration into society by public policies, only that the action is a two-way street, which requires action and mutual concession. The same joy of seeing Mike working and socializing is the same sadness of seeing him give in to addiction or reveal his rough and violent side. All resulting in a fantastic vision of a drain that draws the camera - and Mike - into the darkness of his own 'self', suppressing time and space in favor of a cyclical experience of relapse, death and rebirth. Perhaps Urchin doesn't land all the hits he wants to land, and the relationship with the people who live with Mike, especially the French garbage collector and hippie played by Megan Northam, is just a shortcut not naturally constructed to achieve the desired narrative beat. But Dickinson demonstrates inventiveness and sensitivity for a story that is common on the streets, and marginalized even in the cinema.