Vermiglio
E os documentários Ernest Cole: Achados e Perdidos e Intervenção no 3º dia da 48ª Mostra
Ernest Cole: Achados e Perdidos (Ernest Cole: Lost and Found)
Vencedor do prêmio de melhor documentário no Festival de Cannes, o Golden Eye, o documentarista haitiano Raoul Peck é um artista com ambição parecida com a do seu biografado, o fotógrafo sul-africano Ernest Cole. Do mesmo modo que Ernest utilizou a sua câmera como um instrumento de empoderamento e denúncia, Raoul empregou o como forma de exaltar figuras históricas negras (ex. James Baldwin no maravilhoso Eu Não Sou Seu Negro, ou o político congolês Patrice Lumumba em Lumumba), e, às vezes ao mesmo tempo, realizar denúncias contra o poder hegemônico e racista. Ernest Cole: Achados e Perdidos é um trabalho de reencontro, até literal, com a obra do personagem-título, enquanto, dentro de um mundo contemporâneo de deslocamentos forçados, ou não, é uma discussão acerca da vida no exílio.
Ernest cresceu na África do Sul do Apartheid, a de placas e sinais que determinavam o que era, ou não, acessível a pessoas negras dentro de seu país. As potências mundiais e a ONU, apesar de terem conhecimento sobre o regime segregacionista, cruzaram os braços. À frente das câmeras, Margaret Thatcher ou Ronald Reagan defendiam que as sanções e o boicote econômico tão somente prejudicaria a população mais vulnerável - o que é contraditório porque estamos falando dos mesmos políticos que não agiram da mesma maneira quando mantiveram o boicote a Cuba por mais de 4 décadas. Mas, no fundo, sabemos que o interesse das potências eram as riquezas naturais e minerais contidas no país. A segregação era somente um efeito colateral ou, pior, desejável para que a administração colonialista europeia saqueasse o país. Com a câmera a tiracolo e reaprendendo a fotografar à altura do olhar, Ernest Cole saiu às ruas para documentar as relações servis entre brancos e negros em filme, eternizando a história de opressão de africanos por europeus no livro House of Bondage. Ernest tinha 27 anos e precisou deixar o país para viver no exílio, majoritariamente nos Estados Unidos.
As imagens tiradas por Ernest ganham vida e movimento sutil através da montagem e edição do documentário, e da narração do ator Lakeith Stanfield. O ato de conhecer os trabalhos de Ernest, muitos dos quais haviam sido perdidos e foram encontrados, anos depois, dentro de uma instituição financeira na Sueca, assim repetindo o mesmo ciclo de abuso e apropriação do que é africano por povos europeus, e ainda a sua trajetória e história de vida, é um mérito do documentário. Mais é alcançado, porém: ao utilizar as imagens em movimento de uma forma semelhante ao que faria Ernest Cole, a direção confere à narrativa o papel de eternização de um cotidiano e da busca, na vida média, da expressão da sociedade estadunidense.
Além do mais, embora Achados e Perdidos não possa responder o mistério central, pois não há ainda as respostas, nem os autores da apropriação de negativos de Ernest Cole, pode refletir sobre o exílio, na narração sóbria e enfática pela força das palavras, e não pela forma contida nas palavras. As palavras, iguais as fotografias, carregam em si um valor inestimável, e Lakeith não precisa intensificar o inconformismo e a frustração, a fim de que compreendamos o que passou Ernest. E, para um artista como esse, o exílio é uma faca de dois gumes: se salvou a sua vida, também arrancou aquilo que conhecia, e que, portanto, poderia falar através da arte. Mas, em uma ironia dramática, apesar da incapacidade de se relacionar com o meio estadunidense e ter vivido uma vida amarga e melancólica, Ernest Cole transformou a sua dor em arte, e a terra das oportunidades, em um país não muito diferente daquele de onde veio. Pelas lentes de sua câmera.
Vermiglio
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza (não compreendo como o nosso Ainda Estou Aqui perdeu para esse daqui) e representante da Itália no Oscar de Filme Internacional, Vermiglio é um drama agradável, acessível, embora rapidamente esquecível. É a história de uma família na aldeia de Vermiglio, no alto dos Alpes, uma distância suficiente para que a 2ª Guerra Mundial mal impacte na rotina local. Exceto quando o desertor Pietro, da Sicília, aparece por lá, juntamente com Attilio, o filho de uma moradora local. Ele é acolhido por Cesare (Tommaso Ragno), o patriarca de uma família de 7 filhos, e professor na escola local, e participa da rotina que é basicamente o objeto do olhar da diretora e roteirista Maura Delpero.
Com uma abordagem naturalista retratada em planos estáticos, formalmente austeros, conhecemos cada um daqueles familiares, especialmente Dino, o filho mais velho, que é tratado como uma decepção pelo patriarca, Lucía, que se apaixona por Pietro, Ada, a filha do meio e cujas penitências cada vez mais elaboradas são sugestivos dos pecados (ou “pecados”) cometidos, e Flávia, a caçula dentre as três. Há também três garotinhos, que se alternam como alívio cômico, e um contexto de crítica ao patriarcado discutido já tantas e tantas vezes. Enquanto participamos daquela família, da mesma forma que faz Pietro, o forasteiro digamos assim, podemos perceber a criação determinística por parte de Cesare, que determina qual filha deverá casar, qual filha deverá trabalhar em serviços domésticos (ou ser freira), qual filha poderá estudar. É um patriarcado menos de ação direta, abusiva ou violenta, e mais estrutural, que centraliza em uma pessoa o poder de decidir qual é o rumo da família e, por que não, da aldeia, uma vez que o fato de ser um professor confere a ele o poder sobre os demais.
Não há nada desagradável em Vermiglio, mas também nada que vá destacá-lo, em meu sentir. É um trabalho competente, e que sabe empregar as estações para enfatizar qual o “humor” da comunidade e demarcar as mudanças temporais: o verão coincide com o término da guerra, ainda que seja no inverno rigoroso que a família esteja mais unida. A estaticidade dos planos como um meio de inscrever aquela família, especialmente as mulheres, dentro de papéis pré-definidos, e depois a maior movimentação da imagem, a fim de enfatizar a emancipação, pelo menos, a consciência de seu predicado. Tudo é bem feitinho, com competência, mas é maçante porque a crítica, tantas vezes repetida dessa mesma maneira, parece ter perdido o poder, e não ajuda nada a previsibilidade e determinismo - este, não mais fruto da sociedade patriarcal, mas do roteiro mesmo.
É até difícil escrever sobre obras iguais a essa, pois não provoca emoção e movimento dentro de mim. É o tipo de filme que admiro a construção e compactuo com a crítica (não com a maneira convencional como é feita), aprecio a criação e o desenvolvimento dos personagens (a de Flavia é a melhor, porque, inteligente para perceber que Pietro desenha um coração por não saber escrever, é quem melhor enxerga através do pai, no fim, um simples professor de crianças, apesar de ser tão nova), mas permaneço inerte, inalcançado. Obras de arte não deveriam provocar esse efeito, não?
Intervenção
Os habitantes das comunidades (ou ‘favelas’) do Nove e da Linha, e da área residencial Cingapura Madeirite, foram cadastrados no Projeto de Intervenção Urbana (PIU), que previu a revitalização urbanística da região na zona Oeste de São Paulo e a construção de moradias populares dignas. Contudo, em que pese a autorização haver completado ao menos cinco anos (considerado o início das filmagens, em julho de 2019), o trâmite do projeto parou, em razão do lobby e judicialização pelos moradores da área mais valorizada do bairro e para onde os personagens de Intervenção seriam reassentados.
O preconceito mascarado do receio quanto ao aumento de criminalidade ou de tráfico de drogas está na base do documentário que almeja retratar a realidade dos moradores daquela região, retirá-los da invisibilidade e os desestigmatizar pelo exemplo concreto da práxis. Gustavo documenta a região urbanisticamente, caminhando através de ruas estreitas, realizando tomadas aéreas e mesmo com filmagens de desastres naturais que poderiam ser evitados ou mitigados se houvesse um cuidado com as regiões pobres do mesmo jeito que há com as regiões ricas. Gustavo é só o olhar; os personagens que são os protagonistas, e ao conhecê-los melhor (a sua história, o seu presente, o seu sonho), passamos a enxergar somente a humanidade e não a condição em que se encontram.
Embora o documentário inscreva em seu rodapé a pandemia da Covid-19, uma razão razoável que contribuiu para o projeto ter sido atrasado o tanto que está sendo, e que, acredito, não pode ser marginalizada, não há também como ignorar o desequilíbrio de forças nos bastidores para que o projeto não seja aprovado na Câmara dos Vereadores e as obras não sejam iniciadas. A propósito, obras não, porque isso dá ao todo aspecto puramente material, quando se está falando da transformação de vidas, e notar o quão frustrados os habitantes ficam após uma comissão ser esvaziada por falta de quórum e a dificuldade em se articular dentro do parlamento municipal - sem o apoio concreto - são reveladores do distanciamento da política dos interesses urgentes da sociedade.
São bonitas a esperança e resignação no rosto de uma moradora que perdeu o pouco que possuía em uma enchente, a insistência e persistência de todos em restabelecer a dignidade de uma comunidade, e vê-los à frente das telas, antes do início da sessão de estreia do filme certamente agiganta tais atributos. Talvez por isso seja melancólico e desapontante perceber que a vitória de Intervenção não seja palpável, ora por causa do tempo entre a assinatura e o início das obras, ora por problemas não antecipados após a demora do que deveria ser imediato.
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