Eu tenho sentimentos ambíguos com relação a Homem com H. Poderia tecer elogios à equipe e ao elenco, mas estaria traindo a mim mesmo e vocês no processo, seria falso. Se Ney Matogrosso jamais negou as suas convicções e os seus ideais, por que eu faria agora? Antes, devo revelar um preconceito. Não social, mas cinematográfico, motivado por meu histórico de espectador de biografias musicais iguais a essa: eu não costumo gostar de narrativas que condensam décadas de uma vida em apenas 2 horas, 2 horas e meia. Sinto que é um desserviço ao artista tornar superficial a sua trajetória humana e artística, e o roteiro de Esmir Filho faz exatamente isso: atravessa seis décadas - e não incluirei o epílogo na conta - e avança em muitos acontecimentos da vida de Ney.
A relação abusiva e conflituosa com o pai (Rômulo Braga), de onde adveio o impulso de desobedecer as figuras de autoridade e regras morais conservadoras e tacanhas; o estilo típico de performance no palco, que combinava o desejo de atuar com a voz, e que causava atrito com censores, emissoras de televisão e a banda Secos e Molhados, levando-o à carreira solo; os relacionamentos afetivos e sexuais com pessoas comuns, bem como com estrelas, paralelo à explosão da crise da AIDS no país; e ainda o meio ambiente, e o eterno retorno ao estado natural, a quem nós somos. Há muito, não me refiro apenas a eventos marcantes, como também às emoções irradiadas pelo imenso Jesuíta Barbosa. Esmir encontra pontos comuns que servem como uma espinha dorsal narrativa, intercalada com apresentações no palco em que a citada imensidão do ator se faz ainda mais evidente ao comunicar a corporalidade e expressividade de Ney. E, ainda assim, sinto que é tudo condensado, às vezes até mesmo em um diálogo.
De certo modo, isso resulta em uma biografia musical convencional, imune a críticas ainda por cima, já que os fãs não estão preocupados com isso, desde que as músicas e a interpretação central remetam à sensação que têm quando escutam o ídolo. Eu não os condeno, pois Ney é incrível, e Jesuíta honra a sua trajetória. Mas eu me questiono se Homem com H é a melhor abordagem para esse “ser indefinido” que de convencional nada tinha (ainda bem). Mesmo assim, dentro de uma lógica de mercado, compreendo as decisões tomadas por Esmir Filho, até porque, diferente de um Bohemian Rhapsody da vida, que parecia ter vergonha do verdadeiro Freddie Mercury, e decidiu criar uma fraude, a narrativa abraça por inteiro quem Ney é. A sua sexualidade é retratada, pois parte essencial, seu jeito transgressor e desafiador, que não suportava ouvir ‘nãos’ nem ser tolhido de seu desejo, está tudo aí.
Ney flui como o rio que leva o seu sobrenome artístico - herdado do pai -, e como este rio, jamais pode ser a mesma pessoa, ainda que os princípios que o norteiam sejam os mesmos: a veneração à natureza, que percorre a narrativa por inteiro, até mesmo em acenos na edição sonora; a desobediência à autoridade, combinada com o desejo que não expressa literalmente de ser aceito, como é, pelo pai. Desobedecer é, a propósito, o estilo de vida de quem tem a identidade ou a sexualidade negados, censurados e até mesmo criminalizados. “Um bicho” é como Ney se define, um hábil o bastante para se adaptar às situações em que está e reagir às ameaças de violência de uma gente chula: na Base Aérea do Galeão, em que Esmir homenageia o clássico do cinema francês Bom Trabalho, de Claire Denis, Ney é o conscrito perfeito. Já em um plano sequência eficaz, Esmir retrata a sexualidade fluida de Ney; e, com apenas uma pia de cozinha entupida, a direção comunicou que a fama não trouxe imediatamente o retorno financeiro.
É o tipo de decisão criativa da direção bem sucedida, bem como aquelas que retratam o processo artístico de Ney: as marcas de café, o cigarro não tragado ou a comida não tocada ilustram um momento em que só existe a arte. Já quando afronta os produtores televisivos, encarando as câmeras que o estão filmando, Jesuíta Barbosa repete o gesto com nós, espectadores. Isso porque não mencionei a divertidíssima “negociação” com os censores, de quantas vezes pode mexer a pélvis durante o show. Momentos iguais a esses são bem melhores do que as citações de famosos (não muito diferentes do que os easter eggs nos filmes de super-heróis)… Raul Seixas, Gonzaguinha, que serve um papel embaraçoso de fazer Ney não se sentir um “intruso” por interpretar um forró, e, claro, Cazuza, cuja relação parece um apêndice, que prende a narrativa em um mesmo lugar e a impede de desenvolver-se. Ney relacionou-se com Cazuza, mas será que somente o fato de isso ter acontecido e de Cazuza ter sido quem é justificam a introdução dentro da narrativa, ainda mais quando havia personagens outros que poderiam proporcionar a discussão sobre a crise da AIDS?
Em meio a isso, personagens que entram e saem sem justificar a sua participação ou alguns diálogos simplistas - “Sua voz é muito especial” ou “O mundo tem que escutar tua voz” - não são capazes de diminuir a força motora de Homem com H, que é Jesuíta. Eu já falei dele antes, mas devo reforçar o poder do olhar do ator, um olhar desafiante ou intransigente - quando deve ser -, mas sobretudo, um olhar que, ciente de que jamais será capaz de definir com exatidão a sua existência, aprendeu a acolher as mudanças - de lares, de profissões e de amores -, energizando-se, da mesma forma que os outros fazem nas ondas do mar, em sua própria natureza. Ney ensina-nos que abraçar quem nós somos é capaz de nos levar longe, e se alguém vier nos impedir, jamais devemos abaixar a cabeça.
Boa noite!
Gostei bastante do seu texto, principalmente da definição da parte do Cazuza como um apêndice - tive a mesma sensação…
A questão com o Gozanguinha foi real. A música quase não entrou no disco e Ney apresentou a ele, que o incentivou a colocar. Ele falou isso em várias entrevistas. Então, não foi uma decisão embaraçosa do filme.