Uma convenção estilística facilmente reconhecível nos melodramas é o plano em que uma personagem espia o mundo do lado de fora através das cortinas da janela de sua casa. Por serem, em regra, os melodramas protagonizados por mulheres confinadas à vida doméstica e à sociedade patriarcal, olhar pela janela é a transgressão possível ou o sonho de um mundo distante do alcance de mulheres que perderam a identidade ou o propósito que haviam fabulado na juventude. Instinto Materno emprega e retrabalha essa convenção, a fim de conferir a quem espia o controle aparente e ilusório mediado pela vigilância. É um dos elementos que mais gostei nessa refilmagem do filme belga de Olivier Masset-Depasse (até acredito ter assistido, dada a familiaridade com a qual acompanhei o desenvolvimento da trama, mas o Letterboxd não tem registro. Oh não, em quem confiar?).
O roteiro adaptado pela estreante em longas-metragens Sarah Conradt contextualiza os eventos em um subúrbio típico norte-americano na década de 60, período no qual as vizinhas Celine (Anne Hathaway) e Alice (Jessica Chastain) convivem em harmonia. Celine é plena: após ter deixado a enfermagem, encontrou um propósito como esposa, mãe e dona de casa. É uma personagem clássica, que preenche o tempo organizando o coral escolar e preparando recepções em sua casa, ao lado do marido interpretado por Josh Charles. Alice é bem diferente. Apesar de amar o marido (Anders Danielsen Lie), repudia o desejo dele por outro filho e sonha em voltar a trabalhar como jornalista. O tempo dela é preenchido ou cuidando do jardim da casa - que equivale aos muros quase intransponíveis de uma prisão - ou deixando sua mente inquieta e ansiosa vagar livre.
O idílio é rompido depois de um acidente provocar a morte do filho de Celine, o único que poderia gestar em decorrência do parto com intercorrência. Celine responsabiliza Alice, ou é nisso que esta acredita, levando o espectador a enxergar os acontecimentos a partir de um ponto de vista que pode não ser confiável (por ter sido internada em um hospital psiquiátrico anos antes). E ainda que Celine não responsabilize diretamente a vizinha, tampouco ignora o descontentamento de Alice com esse mesmo estilo de vida que perdeu com a morte do filho e a deterioração do casamento. A minha sensação é a de que Celine acredita, no fundo, embora queira dizer para si que não, que a presença de Alice ao lado é uma piada de mau gosto do destino. O que não a impede de tentar, a despeito de ter se tornado uma estranha naquele mundo (ex. os figurinos a destacam no meio de quem acreditou ser suas amigas), restabelecer os laços com Alice e a sensação de normalidade, preenchendo o vazio da maternidade perdida na companhia habitual do filho de Alice, que também lida com a morte do amiguinho.
Celine não é uma personagem maniqueísta, e Anne Hathaway é competente em torná-la um enigma, melhor dizendo, um mosaico. Celine é culpa, ressentimento, saudade, é vítima, companheira e incompreendida, e pode ser, erroneamente, julgada por eventos capitais quando é muito mais do que isto. Diferente dela, e apesar de Jessica Chastain, Alice é somente paranoia, na maior parte do tempo. E, por ser paranoica e jornalista, é também voyeur e procura um thriller onde talvez este nem exista. Tanto Celine, quanto Alice padecem emocionalmente, confinadas àquela realidade suburbana, enquanto os respectivos maridos têm o direito de ir e vir. Deixar a casa, que não para as atividades domésticas e familiares, sair ou viajar para o trabalho são direitos que as esposas não possuem; há apenas obrigações, passadas de pai para filho, a exemplo da constatação, na manhã, de que a refeição (responsabilidade de Alice) não estava pronta.
O diretor estreante Benoît Delhomme, melhor conhecido por seu trabalho na direção de fotografia de A Teoria de Tudo e que já havia trabalhado com as atrizes em Um Dia e Os Infratores, imagina os domicílios como ambientes saídos do Bates Hotel de Psicose, em que o melodrama convive intimamente com o thriller (ex. contra plongé da escada). Benoît assume a decisão de plantar a semente de dúvida na cabeça do espectador, nem que recorra ao gaslight da protagonista em nível cinematográfico, desacreditando (ou não) o que materialmente enxergamos, ex. o instante em que Alice guarda, na mesa de cabeceira, uma prova material e esta desaparece. Este descrédito prejudica Instinto Materno, não pela decisão propriamente dita de colocar um ponto de interrogação no olhar não confiável de Alice, mas pelas previsibilidade das consequências disso.
Eu irei detalhar e discutir as decisões do roteiro que irão alugar todo um condomínio na cabeça de vocês na nota de rodapé, a crítica preservará os spoilers. De certa forma, a decisão final de Instinto Materno é tanto seu trunfo imediato, como é a sua fragilidade remota. Ao fazerem o que fizeram e da forma com que fizeram, a direção e o roteiro descartaram, à primeira vista, a zona cinzenta em favor de uma abordagem em preto e branco1. Seja como for, a narrativa evidencia que, nesta sociedade patriarcal enlutada e empalidecida, a mulher perde a liberdade, perde a sanidade, e às vezes até ambos.
Contém spoilers, portanto prossiga com cautela em demasia. A decisão de tornar Celine em uma assassina calculista é uma decisão que falha em compreendê-la completamente, mas a resume aos atos monstruosos que pratica. Celine faz o que faz não por insanidade, nem por maldade, mas por ser a única maneira de continuar sendo mãe (que é a única coisa que sabe ser).
Celine estabeleceu uma relação doentia com Theo, o filho de Alice, e a ideia de perdê-lo é o equivalente a de perder o próprio filho, novamente. A cena em que Theo está na varanda e ameaça tirar a própria vida não é só um momento de união temporária das vizinhas, é ainda um momento de alívio em que Celeste expia a culpa e pode salvar quem enxerga como ‘filho’. Os crimes cometidos parecem-me muito mais para evitar que Theo seja roubado de si (pois Alice está de mudança), não para roubar Theo propriamente dito - ainda que seja isto o que acontece no final.
Ou não.
Instinto Materno flerta com possibilidades, mas abraça, no término, a certeza de que Celeste é uma arquiteta criminal, em vez da mulher encurralada pelas circunstâncias e que tomou a decisão monstruosa que tomou para preservar o resto que lhe sobrava.