O Último Azul foi selecionado para disputar a Competição Oficial do 75º Festival de Berlim e conquistou o Grande Prêmio do Júri, o Urso de Prata correspondente ao 2º lugar. Na história, Denise Weinberg interpreta Tereza, uma mulher de 77 anos que, conforme lei em vigor, deverá ser recolhida na Colônia, para onde começaram a ser enviadas as pessoas com mais de 75 anos. O filme dirigido por Gabriel Mascaro (de Ventos de Agosto, Boi Néon e Divino Amor) é uma distopia amazônica, e foi assim que começou meu papo com Adanilo e Rosa Malagueta, atores manauaras, com os quais conversei no hotel Lulu Guldsmeden.
Márcio Sallem - A história da Tereza é universal, fala do processo de envelhecimento por que todos passaremos, e vocês compõem-na como parte do mosaico. Como o Amazonas, com geografia particularmente sinuosa, oferece à essa história que outro Estado não poderia oferecer?
Adanilo - Lembrei da história de um senhor de 70 anos, que saiu para pescar sozinho na época da seca, e quando retornou, precisou passar por um canal e ficou atolado, 3 ou 4 dias longe de casa, até ser encontrado por um helicóptero. Essa história envolve muitas especificidades do que é ser amazônico. O trânsito dos rios, os nossos movimentos.
Rosa Malagueta - A minha bisavó morou a vida inteira no interior. Quando veio à cidade, morreu em apenas um mês. O envelhecer dentro do interior, dentro daquela comunidade, é saudável.
Adanilo - O filme apresenta a doença que é a ideia de organização social dentro da cidade, da ótica industrializada, que tem relação com a ausência de saúde, onde não querem ter preocupação com os mais velhos.
Rosa Malagueta - É igual quando vamos a asilos.
Márcio Sallem - Isso fala da dispensabilidade do outro quando atingem determinada fase da vida. Os artistas produzem artes maravilhosas porque viveram o que viverem. Mas a sociedade tenta negociar essa vida, essa experiência, por uma lógica capitalista, que obriga refletir sobre aposentadoria.
Rosa Malagueta - Sobre a responsabilidade dos filhos.
Márcio Sallem - Ou a irresponsabilidade.
Adanilo - Que é a grande vilã desse filme.
Rosa Malagueta (rindo) - E a amiga dela é uma fuleira também, que vira dedo duro.
Rosa e Adanilo referem-se à Joana (Clarissa Pinheiro), a filha de Tereza, que estimula a mãe a ir à Colônia, para onde os velhos são levados no catavelho (imagem abaixo).
Márcio Sallem - Quero retornar à cidade. A Tereza rejuvenesce no barco, não apenas no sentido físico, mas espiritual. O teu segmento fala de arriscar, o que o Ludemir ensina a Tereza?
Adanilo - Gabriel [Mascaro, o diretor e roteirista] me trouxe uma coisa e eu tentei tensionar com o meu conhecimento amazônico e proporcionar mais doçura do que o que estava escrito no roteiro. A Tereza tem um lado maternal, e flutua entre gentileza e rigidez. Enquanto há o acolhimento do Ludemir e Tereza torna-se como um farol para o personagem perdido e até desvirtuado. É que havia cenas adicionais, não incluídas no corte final, e nós ao assistirmos precisamos reorganizar a nossa relação com o personagem.
Adanilo referiu-se a cenas que não estiveram no corte final e que sugerem um outro relacionamento entre o Ludemir e Tereza que só havia no roteiro. O seu personagem foi transformado na montagem, mas não tive tempo de investigar ainda mais a fundo porque o tempo da entrevista havia acabado1.
Depois, bati um papo mais breve do que gostaria com a atriz Denise Weinberg - tinha um compromisso, que inclusive, fez com que perdesse o horário que tinha com o ator Rodrigo Santoro. Escolhas que fazemos nos Festivais.
Márcio Sallem - Os povos asiáticos, africanos e originários celebram a figura do idoso, que conta as histórias de um povo. Acho bonito que a Tereza começa abatida e rejuvenesce no barco, conte-me mais sobre isso.
Denise Weinberg - A transformação não envolve maquiagem, é interna. Comecei filmando com a Miriam Socorrás [a atriz cubana interpreta Roberta], e Rodrigo [Santoro] foi o último. Ela começa dura, naquela vidinha na fazenda do jacaré, e em cada personagem, percebe um elemento interessante. O Adanilo pinta quadros; o Rodrigo tem um elemento marginal, pelo qual a Tereza atrai-se. Tereza percebe que existem outros meios, até encontrar Roberta, vendendo Bíblias digitais nos rios. O Brasil é tão idiossincrático que tudo é possível, e isto influencia a cabeça dela, abrindo-lhe o mundo para outras possibilidades.
A atriz chama atenção para o fato de que as filmagens foram do avesso, ou seja, por questões de produção e agenda, Gabriel Mascaro do fim ao início, o que tratarei à frente.
Denise Weinberg - Quando acabou o filme, na véspera de acabar, refleti com o Gabriel ‘O que será de mim?’. Vão surgir outros trabalhos, mas nessa intensidade, acho difícil. Quando voltei à São Paulo, onde moro, fiquei um mês dentro de casa, com o desejo de me reconstruir, porque o papel mexeu com a alma, eu vi coisas, senti coisas. E é uma personagem linda, que se liberta até voar.
No fim da tarde, no Berlinale Palast, conversei com o diretor Gabriel Mascaro. Foi mais um bate-papo do que entrevista, que é o que prefiro.
Márcio Sallem - A Amazônia é um personagem dentro do filme…
Gabriel Mascaro - O rio é um personagem singular no filme. Com a sua fluência, abre para a jornada de transformação da personagem, levando-a para lugares nunca antes imagináveis. O ponto de partida é inusitado, porque começamos com compaixão da personagem, forçada a ir embora. Mas esta é a melhor coisa que poderia lhe acontecer, reagir a isso, descobrir uma experiência de vida mais potente do que ficar parada na fábrica de jacarés. É uma viagem que não esperava fazer.
Márcio Sallem - Enquanto os habitantes do rio, os jacarés, são consumidos no local onde a personagem trabalha. O seu filme é uma distopia, mas não há distopia, e sim uma realidade. Um pensamento ocidental que encontra no corpo idoso um corpo que não produz.
Gabriel Mascaro - O que me interesse é ver esse corpo tensionado com o nosso tempo, desafiando uma lógica de mundo, resistindo a essa preconcepção da capacidade desse corpo. O filme joga com essas forças e reage a elas.
Márcio Sallem - Como a aposentadoria compulsória...
Gabriel Mascara - Ou ser obrigado a usar fraldas.
Márcio Sallem - Há sacadas irreverentes, mas também tristes, como a filha que quer internar a mãe e vai ganhar dinheiro com isso.
Gabriel Mascaro - Talvez para a filha seja bom para libertá-la daquele ‘problema’, aquele corpo idoso, e supostamente a mãe estará protegida. O Governo faz uma estratégia populista de dar dinheiro à filha para apoiá-la.
Márcio Sallem - Jogando a família contra si, diferente de você, que parte de uma inspiração dentro de sua família, correto?
A avó de Gabriel Mascaro, aos 80 anos, começou a pintar. Gabriel refletiu sobre essas possibilidades que se apresentam, e eu sobre a ausência de acolhimento do artista que já viveu experiências que enriquecem os seus trabalhos.
Gabriel Mascaro - As atrizes estavam com uma intensidade profunda, vivendo aquilo como uma jornada, um filme dentro do filme, que celebra o ato de trabalhar, o ato de existir no cinema, o ato do cinema contemplar a sua idade, como se o cinema não autorizasse o corpo idoso a ter contradição, ter jornada narrativa ou um tempo de tela.
Márcio Sallem - E você celebra o tema com o teu filme, não é hipócrita. Na tela grande, parece-me que a Denise rejuvenesce e ela me contou que vocês filmaram...
Gabriel Mascaro - Ao contrário. Aí houve dinâmica de produção mesmo, começar pelo fim.
Márcio Sallem - Como é que está a sensação de O Último Azul ter sido o melhor filme recebido no Festival2, vivendo um ‘momento’ do nosso cinema brasileiro com Ainda Estou Aqui?
Gabriel Mascaro - Temos hoje um contexto feliz com o Ainda Estou Aqui no Oscar, colocando o cinema na pauta da paixão como se fosse um time de futebol. A realidade também não é apenas de agora, mas não lembro de ter havido uma filmografia nacional que tenha colocado três filmes nacionais nos três principais festivais3. É uma filmografia que está se revigorando, reflorescendo rapidamente.
Eu torço que O Último Azul tenha uma bela carreira internacional e nacional, e alcance o coração dos brasileiros do mesmo jeito que fez com os corações na fria Berlim.
É irrelevante, do ponto de vista crítico, refletir sobre o que o filme poderia ser, apesar de ser curioso imaginar o que poderia existir entre os personagens na visão inicial da direção e que Gabriel Mascaro não levou adiante.
Durante a entrevista, O Último Azul era o filme melhor avaliado pelos críticos da revista Screen Daily, com a avaliação de 3.4/4. Ao término da Berlinale, continuou sendo o filme melhor avaliado.
Além de O Último Azul em Berlim, Motel Destino esteve na Seleção Oficial do Festival de Cannes e Ainda Estou Aqui no Festival de Veneza.
Excelente!