“O pós vida é muito aleatório”, afirma uma personagem num momento de Os fantasmas ainda se divertem, e é uma definição que se adequa perfeitamente a esta tão atrasada e aguardada sequência, 36 anos após o clássico da comédia de horror dirigida por Tim Burton.
Ser aleatório pode ser algo positivo, artisticamente falando. O caos criativo, divertido e disruptivo é característica essencial do icônico Beetlejuice (Michael Keaton); embora o caos também possa ser um salvo conduto ou cheque em branco a que produções iguais a essa apelam como maneira de justificar a preguiça ou o desinteresse, sem disfarçar o fato de que dependem exclusivamente da nostalgia e não das próprias decisões.
O roteiro escrito por Alfred Gough e Miles Millar (da série da Netflix, Wandinha), com base nos personagens criados por Larry Wilson e Michael McDowell do original de 88, encontra Lydia (Winona Ryder) utilizando os seus poderes mediúnicos num programa de televisão sobre casas mal assombradas, produzido pelo namorado interesseiro Rory (Justin Theroux). O programa alienou o seu relacionamento com a filha gótica Wandi… digo Astrid (Jenna Ortega), ainda mais após a morte do pai/marido, apesar de a relação com a madrasta Delia (Catherine O’Hara) estar bem melhor resolvida após os eventos do original. Lydia, Astrid e Delia são obrigadas a se reunir depois da morte de Charles (Jeffrey Jones não retornou à continuação por ter sido condenado na justiça, na década passada, por pornografia infanto-adolescente1).
Enquanto isso, no pós vida, Beetlejuice ainda namora o desejo de retornar ao mundo dos vivos casando-se com Lydia, mas tem um problema maior para se preocupar: sua ex-esposa, Delores (Monica Bellucci), uma devoradora de almas (o que basicamente significa a capacidade de matar quem já está morto), prometeu vingança e está à sua procura. Para impedi-la, o ex-ator e autoproclamado investigador no pós vida Wolf Jackson (Willem Dafoe).
A fundação humana de Os fantasmas ainda se divertem é uma relação tão genérica entre mãe e filha, que devem se encontrar oportunidades para reconexão durante os eventos narrativos, quanto é salvar o contato daquela com ‘suposta mãe’. Aí está a superação do conflito geracional, da mágoa de Astrid apegada à memória do pai enquanto assiste à mãe namorando outro homem e da inabilidade de Lydia em se desgarrar das visões do pós vida para viver o agora no mundo dos vivos, temas empacotados e industrializados por Hollywood desde sempre. Não há autenticidade no relacionamento entre Lydia e Astrid, e isto vindo de um diretor cuja maior habilidade não é apenas o apuro estético e gótico, mas sim a capacidade de conferir humanidade a personagens marginalizados ou discriminados como monstros pelos outros.
A narrativa melhora consideravelmente sempre que Delia entra em cena e, com o seu narcisismo, empurra a trama central genérica bem longe de nossa atenção. Catherine O’Hara é um gênio do humor e a personagem não mudou a personalidade do original, o que mudou foi o olhar antipático que é substituído por um olhar pitoresco e curioso. Vê-la usurpar a narrativa, enquanto planeja ressignificar o luto em forma de uma arte, idealizando a lápide do marido na forma de uma barbatana de tubarão (que o devorou), é o que salva Os fantasmas ainda se divertem de sua mediocridade. Ela, Willem Dafoe - a quem os deuses do cinema deram uma habilidade de nunca proporcionar uma atuação não marcante - e Michael Keaton, cujo personagem-título está um tico menos mordaz e eletrificado, ainda que seja o mesmo de sempre.
Os atores demonstram competência em um roteiro que parece uma colcha de retalhos (que a essa altura, considero um eufemismo). É um roteiro ingênuo em tentar criar um mistério em relação ao paquera de Astrid, onde mistério nunca houve; conveniente, do mesmo jeito que fugir através de uma porta desenhada no chão; e apressado, perdendo oportunidades de trabalhar a nostalgia além da mera citação direta. Pior é que a dupla de roteiristas é criativa no duplo sentido contido no Soul Train (o Trem da Alma, o tipo de humor que infelizmente não traduz do inglês para o português) e até demonstra ter paciência em revelar a identidade de um morto específico que perambula a ermo pelos corredores do pós vida.
Pior ainda é a direção nada zelosa e criativa de Tim Burton, para quem basta o ato de mencionar, narrativamente, um horror italiano ou um musical sem que os desenvolva, cinematograficamente, em sequências atraentes e que valorize o que cada uma destas expressões teria de melhor. É tipo citar meia dúzia de filmes ou diretores, e achar que isto dispensa articulá-los em torno de uma ideia criativa e argumentativa. Ou, então, a apresentação de um personagem chamado Damien - o nome do protagonista de A Profecia, lembram? - e achar que a referência ou o humor encerra-se apenas na relação criada com a profissão do personagem (um padre).
Enquanto isso, Tim Burton desperdiça as qualidades inerentes à narrativa: a direção de arte de Mark Scruton, expressionista nas portas curvas e caminhos tortuosos do pós vida, gótica por ambientar-se durante o Halloween, e a caracterização dos recém falecidos (figurinos, maquiagem, efeitos práticos ou visuais), em favor da decupagem que favorece a estética plano e contra plano (alternando de um ao outro personagem como se tentasse conferir peso dramático aos personagens) e com uma profundidade de campo reduzida (desfocando o fundo onde está a maior riqueza da narrativa, o seu conceito visual).
Os fantasmas ainda se divertem é apenas mais uma evidência de um cinema exploratório da nostalgia criada ontem, mas que não faz o menor esforço em fabular uma nostalgia para o amanhã. Uma prisão ao passado que talvez seja até pior do que estar preso pela eternidade ao lado de Beetlejuice.
Minha crítica em vídeo:
Os fantasmas ainda se divertem está em exibição nos cinemas brasileiros. Comente abaixo o que você achou do filme.
https://veja.abril.com.br/cultura/ator-de-curtindo-a-vida-adoidado-e-condenado-por-crime-sexual